e acordar nesta manhã de domingo
sentindo tuas mãos brancas, suadas,
como um aracnídeo albino, tentando
violentamente sufocar as batidas deste
coração ralo, e num sobressalto ligar o
rádio no último volume assustando os
vizinhos e implodindo a lentidão da casa.
e sorrateiramente, o cheiro de café
esbarra nos livros e ele traz em seu
rasto o odor de nicotina que não existe,
mas que era o que escapava dos teus
dentes junto as
músicas que só nós,
os dois sobreviventes do pós-amor,
conhecíamos.
nunca gonzaguinha, com quem o rádio
me golpeia sorrateiro, soou tão triste.
me pôr a jogar furiosamente as
roupas do armário sobre a cama,
pelo chão inteiro, e entre o mar revolto
das camisas, das calças, das cuecas,
meias e lençóis, se permitir a calma
de um copo de leite, que tomo como
o desjejum de um soldado, que nas barricadas,
sabe que pode morrer longe de ti,
com alguma carta ríspida endereçada a ti,
dobrada, manchada de sangue e pólvora,
no bolso enlameado.
mas a calma passa, as balas não chegam,
meu exército ao teu ergue a bandeira branca.
rearrumar as roupas em outra ordem,
silencioso, numa hora em preto e branco,
como um ator de cinema mudo, engolindo a
poeira das prateleiras que me fazem tossir
estes ciúmes amarronzados que me irritam
a garganta e fazem meus pulmões rolarem
por abismos que crio, como crio as cores
estroboscópicas da festa onde não pude ir
com medo de aumentarem os desertos.
e olhar as camisas todas dobradinhas,
as bermudas nas gavetas onde guardei
tuas clavículas insones, e achar que está
terminado o trabalho de um século, este
trabalho que calou a voz de todos os poetas,
aqueles que mostrei a ti, e os que não
mostrei, por não haver tempo de viver
a voz obscura e amorosa de todos eles.
pois tu, foi este pedaço de perda e de dano,
e com estas unhas descascadas,
estes caídos olhos saídos de um quadro de modigliani,
foi um pássaro numa paisagem impossível,
um samba antigo numa casa amarela,
tu foi um samurai infalível fatiando a carne
barroca e acesa do verão (o verão sangra azul).
fechar o armário, as portas de correr como
as cortinas de um palco onde dancei
sob a chuva torrencial dos punhais que tu
usava para fazer os coques dos teus cabelos afiados.
e se dar por satisfeito por ter arrumado este
guarda-roupas entristecido e, me olhando nu,
no reflexo fílmico destas portas,
enxergar o corpo ainda intacto:
isto é querer sobreviver a ti.
Um comentário:
Sobreviver, ao desalinho.
Manter a vida de alguém, que não a tua. Sofrido às barricadas, onde pouco se veja das curvas dessa de olhar caído. Antes dela o cair os olhos, desde ser assim nascido que, na desordem do olhar ao espelho, cair por terra o desejo - teu. Desejo, reavivado.
Provisões? fugidias.
A estética da luta, viva!
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