Hoje pela manhã, sua namorada morreu de pico.
Já ressequida de lágrimas, estendeu o braço fino para além da janela, e correu suavemente os dedos ossudos pelo céu, só para constatar, surpresa, que havia desfeito algumas das raras e minguadas nuvens. Abriu calmamente o zíper da calça, e a deixou cair, deslizando pelas pernas de porcelana, se libertou do lingerie preto em gestos que soavam ritualísticos, e despida menos das roupas que de si mesma, se afundou como um corpo inerte naquela cama toda desarrumada, mas antes que pudesse se abandonar por completo ao relento da tristeza, sentiu arder nas narinas a atmosfera daquele quarto espesso de lembranças, um cheiro que volutava acinzentado, formando arabescos que recendiam repletos e transbordantes do estrangulamento invisível do desaparecimento. Seus olhos foram dar, involuntários, no espelho que emergia através escuridão sobrenatural do armário aberto, e mesmo engolida pela densidade amarga do ambiente, conseguiu se ver nua e branca, mirou-se absoluta, porém estranha e torta, do avesso. Os pés de criança sujos e mal cuidados, a ossatura protuberante dos joelhos unidos, servindo de égide contra o reflexo incorruptível da fenda estreita do seu sexo. Perscrutou seu quase não-corpo de magreza mórbida, quase esvanecente, aquela palidez plena, quase dissoluta no ar, e viu a barriga e o umbigo se esforçando para manifestarem-se acima da fundura das costelas bem marcadas e rabiscadas. Perdeu-se por um tempo, se apagou das impressões do mundo, no acariciar da tatuagem, que entre as dezessete que tinha, era a que mais gostava, era a que tinha feito para celebrar um ano de amor: as andorinhas do ombro esquerdo... Olhou-se nos próprios olhos, que lhe pareceram dois espelhos dentro do espelho, e precipitou-se num duplo abismo de imagens infinitas, e enxergou seu rosto surrealista duas mil vezes simultâneas. Nem ligou muito para os cabelos pintados de vermelhos e desgrenhados, só reparou, desinteressada, que eles eram donos do mesmo tom do vinho que se apossou do chão, cuspido de um copo estilhaçado pela força de um telefonema. Achou bonita, de certa forma, a maquiagem manchada, marcas de lágrimas pretas, indiciando falsamente o carinho em seu rosto de mãos sujas de carvão.
Atraída inexoravelmente de volta para a janela, sente seu ombro esquerdo formigar numa espécie de dor contrária, na inversão de uma ardência: as andorinhas tatuadas descolando-se e fazendo ciranda pelo ar chumbo do quarto antes de cruzarem o batente da janela e darem-se para o azul das nuvens desfeitas. E naquele momento, ela colheu forças invisíveis para cometer o impossível de um quase sorriso trêmulo e imperceptível: entendeu aquilo como um convite bonito para o vôo derradeiro, para o abraço da velocidade vertiginosa de uma última queda.
Já ressequida de lágrimas, estendeu o braço fino para além da janela, e correu suavemente os dedos ossudos pelo céu, só para constatar, surpresa, que havia desfeito algumas das raras e minguadas nuvens. Abriu calmamente o zíper da calça, e a deixou cair, deslizando pelas pernas de porcelana, se libertou do lingerie preto em gestos que soavam ritualísticos, e despida menos das roupas que de si mesma, se afundou como um corpo inerte naquela cama toda desarrumada, mas antes que pudesse se abandonar por completo ao relento da tristeza, sentiu arder nas narinas a atmosfera daquele quarto espesso de lembranças, um cheiro que volutava acinzentado, formando arabescos que recendiam repletos e transbordantes do estrangulamento invisível do desaparecimento. Seus olhos foram dar, involuntários, no espelho que emergia através escuridão sobrenatural do armário aberto, e mesmo engolida pela densidade amarga do ambiente, conseguiu se ver nua e branca, mirou-se absoluta, porém estranha e torta, do avesso. Os pés de criança sujos e mal cuidados, a ossatura protuberante dos joelhos unidos, servindo de égide contra o reflexo incorruptível da fenda estreita do seu sexo. Perscrutou seu quase não-corpo de magreza mórbida, quase esvanecente, aquela palidez plena, quase dissoluta no ar, e viu a barriga e o umbigo se esforçando para manifestarem-se acima da fundura das costelas bem marcadas e rabiscadas. Perdeu-se por um tempo, se apagou das impressões do mundo, no acariciar da tatuagem, que entre as dezessete que tinha, era a que mais gostava, era a que tinha feito para celebrar um ano de amor: as andorinhas do ombro esquerdo... Olhou-se nos próprios olhos, que lhe pareceram dois espelhos dentro do espelho, e precipitou-se num duplo abismo de imagens infinitas, e enxergou seu rosto surrealista duas mil vezes simultâneas. Nem ligou muito para os cabelos pintados de vermelhos e desgrenhados, só reparou, desinteressada, que eles eram donos do mesmo tom do vinho que se apossou do chão, cuspido de um copo estilhaçado pela força de um telefonema. Achou bonita, de certa forma, a maquiagem manchada, marcas de lágrimas pretas, indiciando falsamente o carinho em seu rosto de mãos sujas de carvão.
Atraída inexoravelmente de volta para a janela, sente seu ombro esquerdo formigar numa espécie de dor contrária, na inversão de uma ardência: as andorinhas tatuadas descolando-se e fazendo ciranda pelo ar chumbo do quarto antes de cruzarem o batente da janela e darem-se para o azul das nuvens desfeitas. E naquele momento, ela colheu forças invisíveis para cometer o impossível de um quase sorriso trêmulo e imperceptível: entendeu aquilo como um convite bonito para o vôo derradeiro, para o abraço da velocidade vertiginosa de uma última queda.
Um comentário:
Existe uma estranha beleza neste trecho suicida...destaca uma complexa confusão de sentimentos que são quase narcóticos aginda na corrente sanguínea...
Postar um comentário