"Como se tudo que eu possuísse tivesse me deixado, e como se nada pudesse ser o bastante caso retornasse..." (Kafka)
domingo, 2 de outubro de 2011
22 de Setembro
“And my soul from out that shadow that lies
floating on the floor
Shall be lifted—nevermore!”
-Edgar Allan Poe
“O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais”
-Caetano Veloso
Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Álvares de Azevedo morreu de tísica poética aos 21
Byron de febre apaixonada nas
guerras gregas ao 36
Hemingway
ah Hemingway! Esse teve mais estilo:
estourou a cara com uma espingarda aos 60.
Mas que lógica é essa que nos furta a eternidade?
O que é o tempo se não nos é dado a conhecer
cada pequeno acontecimento?
Ando procurando a juventude que
se perdeu irremediavelmente.
Perdeu-se nas noites frias e seus
copos ébrios
nas coxas recendendo a colônia das mulheres
nas ruas desertas onde as madrugadas duram cem anos.
Ou
perdeu-se também nos dias quentes
nas praias claras no triste encontro com o mar
nas casas de sábado cheirando a azul
nas ruas movimentadas onde sempre há
um demônio espreitando ao meio-dia.
Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Chegar a essa altura e não ter onde
cair morto
não ter ânimo de nada
não ter nem mesmo o que fazer a não
ser correr atrás de dinheiro
escrever um ou outro poema ruim e
arquitetar crimes hediondos na primeira hora da manhã.
Tardes dentro de tardes
morrendo em jogos de videogame
morrendo na filosofia apaixonada dos alemães
morrendo na poesia que só se vive pela memória.
Morrendo em mulheres que passam
morenas
negras
pardas
ou
brancas como ela e com o
mesmo perfume de bruxa fajuta.
E talvez ainda
com a mesma bocetinha rosa
do mesmo tamanho
do mesmo gosto
com o mesmo cheiro.
Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Há menos que esse ano um carro me atropele
ou
eu seja escolhido por uma doença incurável
ou
um assassino meta uma bala no meu peito
ou
eu resolva finalmente atender o convite da
janela para o súbito vôo
ainda haverá no ano que vem mais um
dia de sol negro e uma diferente forma
de se deteriorar.
30 anos e não ser mais que uma sombra que
qualquer facho de luz pode aniquilar.
Passaram-se algumas estações e
ainda estão lá os azulejos azuis.
Através da janela eu ainda vejo os azulejos azuis
daquele apartamento da rua cotidiana.
Os azulejos azuis que presenciaram tantas vezes o banho dela
os xampus atrás do vidro canelado que
ensaboaram seus cabelos...
Mas ela agora anda numa ilha do Velho Mundo
escutando Goo Goo Dolls e
cuidando de animais doentes mas
felizes por receber os cuidados das mãos dela.
Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Ser íntimo dos vilarejos bombardeados da segunda guerra
das repartições públicas fechadas
da carne azul da Região dos Lagos
do cheiro de giz de cera dos jardins de infância
das famílias chinesas das pastelarias.
A cada manhã o céu é um rasgo entre os prédios
janelas emparelhadas e olhares que
se entrecruzam mas se recusam a permanecer.
Os salões religiosos na noite silenciosa
os puteiros de Madureira na noite terrível
trovejam dentro de mim suas sacralidades gêmeas.
A Frei Caneca e seus faróis vermelhos
o Campo de Santana e seus milhares de gatos
como espíritos sem descanso embaixo da chuva turva e
na minha boca um gosto de caldo de cana e tequila
um gosto que ficará ressoando mil anos depois de mim
em bocas que ainda não nasceram.
Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Logo estes óculos
este semblante preocupado
me darão o ar sério
austero
de escritor de professor
velho e decadente.
Sozinho em um bar ou
no abafado hermético de um quarto
escutando alguma diva morta
(conheci Piaf através de
uma amiga melancólica nessas
nossas conversas sobre a validade
da vida do amor etc etc)
logo não mais existirá o rapaz de riso largo
-e que mesmo agora só vejo nas fotografias-
não mais o corpo jovem e esguio
esculpido pelas horas de suor e dor
das academias...
O que haverá nos instantes do ocaso?
Ainda carnavais?
Ainda salas de cinema?
A possibilidade de romance?
Praia?
Lapa?
(Porra, como isso dói...)
30 primaveras e ainda não sei responder nada
mas sei que o amor
-mesmo que seja mais uma vanidade -
torna tudo eterno em um instante
(e fora deste instante tudo é mediocridade).
Portanto
enquanto houver amor em tempos tristes
enquanto houver poesia em dias sombrios
eu haverei de ser maior do que qualquer morte.
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