I
Quando me ofereci para acompanhá-la
até o ponto de ônibus e ela
disse “não” era o desamor que
revolvia em seus olhos: no
seu olhar de despedida o
rancor é um vau de águas escuras
abarrotado de estrelas derramadas.
II
Ando pelas ruas com as pernas
doloridas pelo esforço que é caminhar
mãos nos bolsos
tosse entre as costelas
ouvindo a solidão das árvores
a fúria dos carros no abismo das ruas como
quem se deleita nas tristezas harmônicas de Mahler.
O dia e a noite são uma coisa só e
as horas me esquecem e o
tempo não denuncia seu passar com
exceção do espelho que diz a tessitura
do meu envelhecimento.
O frio é uma lâmina calada e
essa é a época dos limões cortados e
das gargantas inflamadas e da ferrugem nas
anilhas de ferro e dos dedos
recendendo a sabonete.
Os antigos dias límpidos e frios voltaram
como uma nova estação e
estou sozinho novamente dançando
com cadáveres.
III
Ando cada vez mais doente mas
as mulheres andam dizendo que
estou a cada dia mais bonito:
é verdade que a idade embeleza
alguns homens mas
no meu caso
- como dizia o poeta morto –
é a dor que me torna muito mais elegante.
IV
As cores me agridem.
O sol alaranjado acende um halo em
cabelos amarelos e sonolentos:
meus olhos andam se perdendo
da poesia.
Cai uma folha vermelha da
árvore toda verde
o único vermelho tomba ao
chão suave namorando a brisa: é
o guerreiro vencido...
V
Às quatro da manhã os
cães ladram pra mim os
gatos se eriçam e fogem: eles
intuem o pedaço de inferno que
trago debaixo da língua.
Às quatro da manhã as janelas
acesas vertem solidões
as repartições públicas as
escolas os hospitais os escritórios
encravados sob as unhas da noite e
dentro das avenidas eu me esgueiro
entre incontáveis Vias-crúcis.
VI
Na mochila dorme um
guardanapo dobrado onde mora um
poema escrito na Rua da Lapa.
Um poema onde há um nome que se
pronunciado ou lido ou ouvido ou pensado
- um nome que se existe no momento -
cria vácuos acima dos prédios que
engolem paisagens inteiras.
VII
O jornal da TV diz que a polícia
está invadindo o morro vizinho.
Neste quarto o “não” dela ainda
ressoa pelas paredes e no
movimento bêbado dos lençóis.
E à parte tudo que sobra e que se perde
ele me encoraja a seguir
definitivamente
entre espelhos ávidos e à luz da televisão.
Escrevo esse poema
que é uma coragem e um amor
embalado ao som das rajadas de metralhadora.
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