quando ela foi embora, catou laboriosamente todas as roupas,
os badulaques inacessíveis, os fios de cabelo espalhados pelo chão. quando ela
foi embora levou quase tudo, menos as peças íntimas, as camisolas: essas ela
deixou submersas na gaveta, a última de cima pra baixo, pois havia decidido, já
sem nenhuma mágoa, que de agora em diante dormiria o resto da vida
silenciosamente nua. isso era símbolo e prenúncio de uma mudança de existir,
uma troca de pele, um desancorar-se.
ainda não chovia aquela manhã, ainda não. iria chover mais tarde, pois
ela acordou agarrada na certeza de que não havia felicidade ali, e isso desenhou
a promessa de algumas nuvens no céu daquele quarto. e ele, triste e estranho
como era toda vida, ficou ali, imóvel: uma relíquia de alguma civilização
antiga recoberta de pó. tropeçando nos livros, desrespeitado pelas gavetas, o
cômodo azul escuro: um cheiro infinito, a
possibilidade da mudez, e da criação delicada de várias espécies novas de
solidão.
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