quinta-feira, 31 de julho de 2008

Sob Um Céu Azul Claro, Sobre Um Céu Vermelho Escuro


Do alto do décimo oitavo andar ela via o mundo se modificar. Observava a multidão diminuta do centro da cidade, os carros coloridos e brilhantes cruzando, entre a luz do sol e as sombras dos prédios, a avenida distante. Como uma ave de rapina a procura da presa, ou como o olho onisciente de um deus enfurecido, ela perscrutava inconscientemente toda a paisagem em busca de algum detalhe em que pudesse se ater. Era o tédio do escritório que ela tentava amenizar pela janela, entre um cigarro e outro, entre um copo de café e outro. Era o horário do almoço, o sinal que marcava mais meio expediente de monotonia.
Olhava todas as coisas rápidas, todas as coisas lentas, tudo o que se movia, e aguava um fastio de perceber que aquele movimento não chegava até ela, não alcançava a altura do andar onde ela se encontrava. Vagava os olhos pela sala do escritório, e nada esboçava vida, nem uma única folha ameaçava cair no chão forçada por alguma brisa repentina. Vigiava as pessoas, que dali de cima lhe pareciam tão insignificantes, e imaginava os milhões de pensamento em desvairada sucessão, a cada milésimo de segundo, dentro de cada cabeça daquela manada desenfreada, e presumia que tudo o que se dava ali, pulsava em amor e ódio, em alegria e tristeza, mas entristecia na certeza de que nunca na vida poderia conceber as preocupações do mundo, nunca poderia mergulhar na motivação dos seus sentimentos. Ergueu a visão acima da capa de poluição que recobria o horizonte e viu o céu azul, o mesmo céu que no trajeto diário dentro do ônibus ela só vê refletido no corpo envidraçado dos prédios. Apagou todas as outras impressões que tinha do mundo na ciranda de gaivotas que pairavam um pouco acima da sua janela, e naquele instante não teve nenhum pensamento, só teve vontade, um desejo insondável de viver na beleza do cotidiano de todas as coisas, vontade de que sua vida, que é só sua, contivesse um pouco das outras também.
Resolveu aproveitar o pouco do horário do almoço que lhe restava, já que não comera nada, e sair daquele confinamento de papéis e monitores. Pegou o elevador lotado, e percebeu que o silêncio velado dos seus passageiros sempre faz o trajeto, entre um andar e outro, parecer duas vezes mais longo. Quando ganhou a rua, a primeira coisa que a atingiu foi o sol tépido do outono amornando sua pele ressecada pelo ar-condicionado. Esgueirando-se entre o vai-e-vém das coisas, se sentia como uma natureza estranha aquilo, como se todo o tempo estivesse andando, mesmo que não estivesse, no sentido contrário ao da maré. Estudava todas as faces, mas ninguém lhe devolvia um escrutínio qualquer que fosse, descobria que os ombros se chocam e passam, mas os rostos apenas passam... Parou em frente a uma loja onde algumas peças de roupa lhe chamaram atenção, e por um átimo achou ter visto alguém, através da vitrine, lhe mirando fixamente de dentro da loja, mas logo percebeu que era seu próprio reflexo no vidro, e se sentiu esquisita por esse momentâneo não reconhecimento de si mesma. Pôs as mãos pálidas sobre o rosto branco agora corado pelo sol, e o tocava como se o tocasse a primeira vez, com o cuidado com que se toca o rosto de um estranho. Começou a enxergar o seu cabelo amarrado, e o tailleur preto que vestia, como uma espécie de desfiguramento. Soltou os cabelos num só gesto impensado, e eles caíram macios e lentos, num pouso ligeiro que acobertava por completo os ombros esguios. Parecia-lhe que isso amenizava o seu desconhecimento de si, e lembrou com um misto de ansiedade e angústia do fim-de-semana, quando ela podia ser ela mesma, quando podia ostentar seus piercings e tatuagens pelas praias e noites do Rio. Mas logo se deu conta que era burrice continuar ali parada, admirando saias e olhando nos olhos a imagem de uma quase desconhecida.
Seguiu o caminho atenta a todas as coisas, e se deu conta que algumas delas concorriam umas com as outras, como quando vê, em espirais amarelas dançando pelo ar, o perfume da moça workaholic que passa por ela, digladiando-se invisível com o odor do mendigo que dorme na esquina onde repousam incontáveis urinas noturnas. Estava sensível a tudo, tudo abandonava nela uma sensação incompreendida, tudo aderia a ela e ficava ali retido e embolado no peito e no pensamento. Chegou a conclusão que estava ficando deprimida, concluiu cheia de medo porque se conhecia... era por demais melancólica, e temia que se entrasse nessa de depressão, não conseguisse mais voltar. Imersa, quase afogada, nessas lucubrações, com os olhos fixos na avenida, mas não apreendendo nada do ambiente a sua volta, atravessou... quando deu por si o ônibus já era um gigante do seu lado esquerdo...
A última coisa que viu foi um céu vermelho quase límpido de nuvens carmim. O céu que ela via diariamente espelhado nas vidraças dos prédios, exceto pela cor, era o mesmo céu no reflexo do sangue que vertia a sua cabeça. Viu um sentido de beleza naquilo tudo, achou bonito morrer daquele jeito, porque parecia-lhe que o céu inteiro fluía dos seus pensamentos.

domingo, 27 de julho de 2008

Senhora da Arcádia (ou Oberon e a Rainha Titânia)


Sonhei de você um sonho tão bom,
que quando acordei já sabia
que teria um dia de horas desfeitas.
Na reunião de toda minha vontade
desejei viver no engano, morrer no apolíneo do sonho,
tapear essa tragicidade humana que sempre encontrei
mais no amor do que na morte.
Alvoreci o desejo do seu corpo musculoso
pesando novamente sobre o meu,
e agüei ter percebido como éramos tão bonitos,
nós dois, um casal de dessemelhanças,
você nessa sua força e inconseqüência,
e eu com essa minha fragilidade de vidro,
te fazendo meu homem perfeito,
e me deixando ser a sua mulher submissa.
E foi quase um exercício filosófico
achar que tudo na vida me fez o que sou
apenas p’ra esperar pela sua chegada...
E que, no entanto, nada do que fizemos,
nenhuma daquelas nossas reminiscentes tardes,
soube me preparar p’ra sua partida...
Mas vou bebendo (e engasgando) enormes tragos de alívio,
enforcado nessa irracionalidade de olhos abertos que é a poesia.
Vou passando os dias como o velho solitário,
que na sua pequena e embolorada casa
não faz nada além de alimentar seus cães,
colocar as gaiolas da varanda sob o sol da manhã,
e chorar as fotos em preto e branco de alguém que já dorme,
mas que ele amparado pelo vinho,
ainda a vê olhando p’ra ele,
pelas frestas das portas e das janelas emperradas.
Sou esse velho que espera por um infinito sono,
do qual, como um Hamlet vencido,
ele não precise nunca mais despertar.
E será novo e derradeiro o sonho que criei p’ra mim:
quando vai dar na telha dessa sua oca cabecinha loira
a loucura de assumir a minha vida,
p’ra finalmente dividir os meus armários,
colocar mais um prato na minha mesa,
e com seu malicioso sorriso de moleque,
ter de volta o prazer que você vivia falando ter,
ao me ver, por sua causa,
atear fogo em todos os meus navios...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Menina dos Olhos


Tudo se recolheu em silêncio quando ela cruzou a minha frente imersa no movimento escuro da pista de dança. Entre um e outro copo de cerveja, eu passei a espreitá-la esquivando meus olhos de outros rostos fugidios. Na penumbra barulhenta tudo era impressão, tudo era desfocado, só ela, só a face dela, resistia definível. Uma hora a multidão, como se comprimida pela força dos meus sentidos, se abriu, deixando eu e ela apenas separados pelo desvario dos fachos de luz caleidoscópicos. Isso me imbuía de uma espécie de coragem incerta, que amparada pelas muletas do álcool, me chamava em agonia para ir até ela... mas estanquei quando, no meio do segundo passo adiante, a minha racionalidade entorpecida resolveu elegê-la como a musa intocável daquela noite, e que trocar qualquer palavra com ela seria contar com a possibilidade do seu “não”. Isso acabaria com o encanto, isso mataria aquilo que criei e que só existiu em mim. Fiquei quieto e embriagado no meu canto, entre uma música e outra, entre uma lembrança da Louise e outra, eu ouvia meus amigos me encorajando. Porém, tudo soava tão distante, e eu, com aquele meu sorriso de lado meio blasé, achava tudo de uma tristeza tão bonita...
Meus amigos não sabiam que ali, apoiado nas caixas de cerveja, enquanto a minha angústia começava a soprar em meus ouvidos alguns primeiros versos, eu a tinha por completo, muito mais inteira que qualquer casal daquele lugar poderia ter um ao outro.
Talvez eles nunca saibam que para um poeta, admirar uma coisa, já é vir a habitá-la.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Hoje pela manhã...


Hoje pela manhã, sua namorada morreu de pico.
Já ressequida de lágrimas, estendeu o braço fino para além da janela, e correu suavemente os dedos ossudos pelo céu, só para constatar, surpresa, que havia desfeito algumas das raras e minguadas nuvens. Abriu calmamente o zíper da calça, e a deixou cair, deslizando pelas pernas de porcelana, se libertou do lingerie preto em gestos que soavam ritualísticos, e despida menos das roupas que de si mesma, se afundou como um corpo inerte naquela cama toda desarrumada, mas antes que pudesse se abandonar por completo ao relento da tristeza, sentiu arder nas narinas a atmosfera daquele quarto espesso de lembranças, um cheiro que volutava acinzentado, formando arabescos que recendiam repletos e transbordantes do estrangulamento invisível do desaparecimento. Seus olhos foram dar, involuntários, no espelho que emergia através escuridão sobrenatural do armário aberto, e mesmo engolida pela densidade amarga do ambiente, conseguiu se ver nua e branca, mirou-se absoluta, porém estranha e torta, do avesso. Os pés de criança sujos e mal cuidados, a ossatura protuberante dos joelhos unidos, servindo de égide contra o reflexo incorruptível da fenda estreita do seu sexo. Perscrutou seu quase não-corpo de magreza mórbida, quase esvanecente, aquela palidez plena, quase dissoluta no ar, e viu a barriga e o umbigo se esforçando para manifestarem-se acima da fundura das costelas bem marcadas e rabiscadas. Perdeu-se por um tempo, se apagou das impressões do mundo, no acariciar da tatuagem, que entre as dezessete que tinha, era a que mais gostava, era a que tinha feito para celebrar um ano de amor: as andorinhas do ombro esquerdo... Olhou-se nos próprios olhos, que lhe pareceram dois espelhos dentro do espelho, e precipitou-se num duplo abismo de imagens infinitas, e enxergou seu rosto surrealista duas mil vezes simultâneas. Nem ligou muito para os cabelos pintados de vermelhos e desgrenhados, só reparou, desinteressada, que eles eram donos do mesmo tom do vinho que se apossou do chão, cuspido de um copo estilhaçado pela força de um telefonema. Achou bonita, de certa forma, a maquiagem manchada, marcas de lágrimas pretas, indiciando falsamente o carinho em seu rosto de mãos sujas de carvão.
Atraída inexoravelmente de volta para a janela, sente seu ombro esquerdo formigar numa espécie de dor contrária, na inversão de uma ardência: as andorinhas tatuadas descolando-se e fazendo ciranda pelo ar chumbo do quarto antes de cruzarem o batente da janela e darem-se para o azul das nuvens desfeitas. E naquele momento, ela colheu forças invisíveis para cometer o impossível de um quase sorriso trêmulo e imperceptível: entendeu aquilo como um convite bonito para o vôo derradeiro, para o abraço da velocidade vertiginosa de uma última queda.