quinta-feira, 21 de junho de 2012

Anakin Skywalker



Acordei como quem emerge sem fôlego
desnorteado
rodando a casa
uma canção de João Bosco no rádio
um filme de Iñarritu na mão:
não sabia o que procurava mas
o sol no terraço me acalmou.

As casas as indústrias os barracos dormitam
na neblina da manhã:
um véu esbranquiçado empalidecendo
o corpo azul do sábado.
Só as árvores jazem acordadas e
conversam comigo poemas do sereno e
coisas da solidão.

Há poluição e fumaça de óleo diesel já
a essa hora e um trem de
carga soando distante (como soam todas
as coisas na manhã vagarosa).
Os livros me esquecem perdidos em
caixas de um quarto empoeirado e úmido:
tudo é um não-querer ser.

Mas o dia vai ser longo e
a tardinha será de sol e minhas
carências e angústias se aniquilarão todas
no caos das ruas e das saias dionisíacas.
E teremos nossa filosofia embriagada:
Freud Castañeda Blake Kerouac todos
bêbados trocando as pernas na noite morna.
E ando me apaixonando uma vez por semana
- mas não por você nietzscheana -
e isso parece o processo final de quem
por saudade e culpa
teve a sua temporada no inferno e voltou para
entalhar na pedra das manhãs sonolentas:
Adeus velho amor
adeus adeus
é hora de reencontrar a paz na solidão.

A Invasão da Normandia



Que lugar é esse?
Quem são todas essas pessoas?
Rostos fugazes que podem nem
existir nas incongruências das esquinas.

Encostado num poste esperando que
o mundo se acabe ou apenas
que alguém me sorria e diga
alguma palavra de afeto e que
isso possa ser uma salvação.

Enquanto isso
putas de vinteecincoreais passam
brincando e gritando querer dar o cu e
adolescentes bêbadas recendendo a
colônia querem na madrugada receber
todos os sacramentos entre as pernas.

Não temos família
nós os vadios
atrás de mais uma cerveja de
um pau de uma boceta para
adensar a angústia que nos fabrica
o absurdo da existência animal.

Encostado num poste
entre burgueses
estrangeiros desabrigados e ladrões
esperando que o Rio de Janeiro se
esfarele inteiro e com isso
tudo passe a cheirar um
pouco menos a abismo.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Ars Moriendi




Agora eu sei realmente que
junho chegou: a cidade aguada de
cinza e os pingos de chuva se
espedaçando no asfalto e se
chocando no pára-brisa dos automóveis.

Sentado à mesa solitária
afrontando o frio da tarde com
um copo de açaí eu assisto como
quem assiste ao cinema um
casalzinho de estudantes.
Ela contra as grades
envergonhada
tapando o rosto com as mãos
e ele
a pressionando com indiretas sussurradas
falando e abrindo os braços e se sacudindo
fingindo calma enquanto olha
fixamente pra boca da pequena.
Sei o quanto o coração deles deve
estar bombeando a todo o vapor.
Até que ela cede e eles se beijam contra
as grades na tarde da terça-feira útil.

Sorrio de banda:
não importa a idade o
xadrez é sempre o mesmo.
É a primeira vez deles e sei que
assistir aquilo é uma oportunidade
rara no desamor do subúrbio:
dois seres se desejando dentre a frieza dos prédios.

E pra um velho como eu
- cujo os dias já não suportam mais o amor –
aquilo deixa de ser cinema e
passa a ser um maravilhamento incabível.
Sentado à mesa solitária
afrontando o frio da tarde com
um copo de açaí
sinto que esse enlaçar de corpos tem
a potência e a beleza que deve ter
contemplar a morte de uma estrela.

Alta Idade Média



Onde agora você
que rebentava em mim e
fugia entre os dedos?
Onde agora nessas semanas gosto de chumbo?
Cada dia de ontem é
um passado distante
quer dizer
acho que cada vinte e quatro horas é
uma era inteira.

Onde você agora
poesia libérrima
poesia invernal?
Quando mais preciso de você
entrego-te ao carrasco e
te deixo agonizar no antiromantismo
do computador.

Lídia e Patrícia



Mulheres sonhando à boca da noite
sozinhas dirigindo seus automóveis.
Mulheres tristes e imperfeitas na
chuva ácida da cidade.

Mulheres pequenas
mulheres poemas.

“Dindinha lua brilharia mais no céu”



Sabe
perdeu-se a receita da tua felicidade.
Igual a ti não haverá mais ninguém:
tens essa beleza de dia de domingo
quando desata a chover.

Abrirá as cortinas e beijará o sol
gostará de filmes franceses e
conhecerá outros países e será
uma alegria descobrir que as orquídeas
te saúdam na mesma língua em
qualquer outro lugar do planeta.

De um jeito ou de outro serás rica.
Tu semearás asas nas pessoas.
E quando chorar
-cristais delicados se chocando –
todas as coisas chorarão junto e te aliviarão.

Eu sei
- e talvez tu ainda aches que não –
mas terá ao teu lado um homem gigante
pois essa é a tua altura.
E será um sentimento indescritível ver
seus filhos sentados à mesa num
café da manhã de um sábado sonolento.

Verás cores novas em dias de
céu claro e sorrirás pros aviões que
fissuram o absurdo azul.
Viverás de arte:
tuas aquarelas terão cores que
acendem nos dias escuros e quando
fotografar as casas velhas
por um segundo nelas
(apenas por um segundo)
lembrarás de mim.

Setembro continuará sendo teu
aniversário e sufocada de sorrisos e
abraços via-lácteos de quem te
quer bem deixará a primavera vir
morar em teu colo.
Há de ser uma velha teimosa e hospitaleira
regando seus jardins em uma
rua silenciosa e esquecida da cidade.

Ah leãozinho leãozinho
será linda a tua vida e mesmo
eu tendo sido bandido
terei sorte se
entre tanta mágoa
em um dia ou outro
lembrares de mim como o
menino poeta e perdido que
se protegia do mundo debaixo dos
babados do teus vestidos.

A Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo e do Templo de Salomão




I
Quando me ofereci para acompanhá-la
até o ponto de ônibus e ela
disse “não” era o desamor que
revolvia em seus olhos: no
seu olhar de despedida o
rancor é um vau de águas escuras
abarrotado de estrelas derramadas.


II
Ando pelas ruas com as pernas
doloridas pelo esforço que é caminhar
mãos nos bolsos
tosse entre as costelas
ouvindo a solidão das árvores
a fúria dos carros no abismo das ruas como
quem se deleita nas tristezas harmônicas de Mahler.

O dia e a noite são uma coisa só e
as horas me esquecem e o
tempo não denuncia seu passar com
exceção do espelho que diz a tessitura
do meu envelhecimento.
O frio é uma lâmina calada e
essa é a época dos limões cortados e
das gargantas inflamadas e da ferrugem nas
anilhas de ferro e dos dedos
recendendo a sabonete.
Os antigos dias límpidos e frios voltaram
como uma nova estação e
estou sozinho novamente dançando
com cadáveres.

III
Ando cada vez mais doente mas
as mulheres andam dizendo que
estou a cada dia mais bonito:
é verdade que a idade embeleza
alguns homens mas
no meu caso
- como dizia o poeta morto –
é a dor que me torna muito mais elegante.


IV
As cores me agridem.

O sol alaranjado acende um halo em
cabelos amarelos e sonolentos:
meus olhos andam se perdendo
da poesia.
Cai uma folha vermelha da
árvore toda verde
o único vermelho tomba ao
chão suave namorando a brisa: é
o guerreiro vencido...

V
Às quatro da manhã os
cães ladram pra mim os
gatos se eriçam e fogem: eles
intuem o pedaço de inferno que
trago debaixo da língua.
Às quatro da manhã as janelas
acesas vertem solidões
as repartições públicas as
escolas os hospitais os escritórios
encravados sob as unhas da noite e
dentro das avenidas eu me esgueiro
entre incontáveis Vias-crúcis.

VI
Na mochila dorme um
guardanapo dobrado onde mora um
poema escrito na Rua da Lapa.
Um poema onde há um nome que se
pronunciado ou lido ou ouvido ou pensado
- um nome que se existe no momento -
cria vácuos acima dos prédios que
engolem paisagens inteiras.

VII
O jornal da TV diz que a polícia
está invadindo o morro vizinho.

Neste quarto o “não” dela ainda
ressoa pelas paredes e no
movimento bêbado dos lençóis.
E à parte tudo que sobra e que se perde
ele me encoraja a seguir
definitivamente
entre espelhos ávidos e à luz da televisão.

Escrevo esse poema
que é uma coragem e um amor
embalado ao som das rajadas de metralhadora.

Tentativa Inócua de Descrição do Rebentar da Poesia



O poema
enquanto não escrito
é um punhal encravado no peito.
O poema incomoda
sangra
o poema zune o dia inteiro no
ouvido interno implodindo o equilíbrio.

A possibilidade do poema é
um louco se debatendo dentre as
paredes do corpo:
mas o poema não
respeita camisas-de-força e
nem mordaças: o
poema que esmurrar o
poema quer morder.

O poema se arranca com
unhas e dentes
se puxa o poema pelos cabelos
(alguns poucos se retiram
cirurgicamente qual um coágulo ou
um parasita).

O poema é um escarro prestes
a ser cuspido é o
esperma que salta no instante do orgasmo:
o poema é um orgasmo.

O poema é um silêncio no mundo mas
no íntimo do poeta ele grita e
ecoa através de abismo e cavidades.
Escrever o poema é trabalho de parto
é expurgo
é exílio
é grafar o amor: todos os poemas
são de amor toda grafia é
um ferimento.

Todo poema
senhoras e senhores
enquanto não escrito
é uma ameaça
uma declaração de guerra.

Manhã de Maio



Hoje o domingo sopra sua cor de
um azul impossível entre
as frestas da janela empoeirada e
o cheiro do café de meu pai se
esgueira sorrateiro pelo quarto calado.
O sol esbarra nos livros derrubados e
afora isso
tudo ainda dorme porque é
no sono que as coisas se
sabem sem dor.

Ah domingo me deixa quietinho!
Não me venha ferir de tua beleza
não venha prometer qualquer descanso:
acordar ainda é muito triste
viver ainda é cedo demais.