quinta-feira, 3 de setembro de 2015

para além do bem e do mal

olhar sua foto para fora da nuvem dos remédios,
acariciando um gato, o cabelo por sobre os óculos;
olhar sua foto para além das tardes nos pisos frios,
da esperança de um café, das celas dos suicidas.

lembrar da filosofia alemã que escorre pelo teu braço,
e que num dia qualquer  a ouvi dizer “você vai
perceber que está tão errado em me querer”...
mas saiba que com isso você contraria o alemão de
que tanto gosta, pois esquece  que somos maiores que a vida.

somos fortes o suficiente pra encarar os pulsos abertos,
as drogas controladas no armário do banheiro.
somos fortes pra dizer “sim” a vida, com a mesma avidez
que digo “sim” a visão absoluta dos seus peitos.
somos fortes como eu tenho de ser ao encarar esse dia
feito em escombros por descobrir, através de uma fotografia,
que longe daqui você ainda é capaz de existir sorrindo.

“se eu dissesse que estive no seu coração”

num ímpeto repentino arrumar o quarto de estudos,
me pôr a jogar tanta coisa fora e, entre os livros,
sem querer, topar com a crua caixinha esquecida.

todo movimento entra em suspensão: há ali um catálogo de amores.

de alguns ficou apenas o 3x4,
de outros os poemas, as cartas, as fotografias.
e teve um, apenas um, que ali dentro deixou tanto:
declarações no meio do dia, bilhetinhos súbitos,
bijuterias, o anel carcomido de ferrugem...

pensei também naqueles que não deixaram rastro,
que não a memória do volume de suas clavículas e omoplatas.

mas no dia de hoje alguns andam desaparecidos no mundo,
outros aparecem e desaparecem respeitando os mecanismos da vida,
mas a maioria esmagadora está casada e tem seus filhos.

e eu ainda aqui, sozinho, nesta mesma cidade,
arrumando livros, roendo as unhas, e criando gatos.

não queria admitir, mas amassar cada recado, cada fotografia,
foi mais duro que dobrar folhas de chumbo.
e a verdade é que sou bem triste: à minha vida
só serve o que não fica para sempre

sábado, 1 de agosto de 2015

O MAIS PERIGOSO EM UM TIGRE SÃO OS OLHOS


quando você chegava nos fins de semana,

eu tinha minha parcela semanal de perigo:


eram dois dias inteiros trancados no


apartamento com o tigre.



mas agora não há mais tigre,


o pó de café dura o mês inteiro.



portanto, adeus às suas unhas e dentes, ao seu cheiro de boas vindas.


adeus ao seu rímel, sua escova cacheadora, seus m&m’s coloridos;


adeus aos noturnos fios dentais, adeus à beckett, ao meu nome italiano...



e se ainda assim


eu disser que tudo é exílio fora dos seus pequenos enfeites,


sim eu sei, você vai rir e confirmar a nossa teoria de que


eu fui o bicho mais brega que já invadiu a sua praia.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

foram longos os anos até esse beijo chegar,
e ali, naquele grão de receio e desejo,
fomos  bonnie e clyde engatilhando as armas,
rodin e claudel esculpindo um futuro possível .

em essência, sempre fomos (e seríamos) dois vagabundos.

lembra? o plano era esse, e era infalível: nós
dois roubaríamos um daqueles quadros de picasso
e, gargalhando, o entregaríamos aos mendigos.

fugiríamos com a roupa do corpo.

e aí criaríamos nossos filhos em lumiar,
nus pela vida afora, entre as paredes cor de
tijolo, sob os telhados de madeira úmidos de sereno.
eu seria aquele coroa de corpo malhado e
você a menininha dos dreads,  e chocaríamos
os caretas: um cara preto com o dobro da sua idade
escrevendo poesia com cacos de vidro em brasa.
mas seríamos os dois contra o mundo, despedaçados
de amor num labirinto dos espelhos quebrados,
essa espécie de afeto do qual não sentimos os
atravessamentos:  pois é um amor macio, como é
macia a faca na carne de quem terminou de
dormir com o seu assassino.

e o convívio mitigaria tudo.

eu logo me cansaria da sua juventude, pois
nunca aprendi a lidar com intensidades.
para me salvar disto, cultivaria meus cactos arredios
no deserto das tuas tranças: ainda que o sol insistisse em caminhar
sobre os teus cabelos oleosos, mal lavados, despenteados,
eu seria seu contrário, seu yin, eu seria os dias chuvosos na tua vida.

e você, por outro lado, essa tua mania sorridente
de me achar o melhor de todos,
se desfaria nas horas das conchas e das sementes,
nas horas silenciosas das pinturas esotéricas.

chegaria, numa explosão, o tempo da mágoa.

brigaríamos como brigam os casais do cinema, e assim
você me descobriria como realmente sou: sujo, barbudo e triste.
então você iria embora, me deixando sozinho, indefeso,
entre cães, estantes de bambu, e crianças descalças.
mas te buscaria no vento (farejando teu cheiro de bicho
igual ao das mulheres sem vaidade), e te encontraria,  sobre
as pedras abafadas da cachoeira, e seria uma
visão tão absoluta que eu teria medo de desfaze-la.
e o impulso de dizer que te amava seria irresistível,
mesmo me sentindo ridículo e velho, chegaria a você e
te abraçaria com força, mergulhando teus peitos em meu
corpo, e isso seria como dizer que te amava sem ser ridículo.

olha, você seria minha mãe de 20 anos, e eu, o seu filho de 40.

e esse poema que recria dias que não virão é só
uma forma de dizer que ali, em cada segundo daquele
beijo arquitetado e criminoso, fomos (seríamos) o
casal mais feliz e bonito dessa porra de vida inteira.

domingo, 23 de novembro de 2014

videogames

trago nos olhos o olhar de todos os cães de rua do
bairro, asilo no peito os vagabundos, os depressivos.
mulheres se perderam na água parada dos dias,
os jovens casais voltando do supermercado:
eu vivo a cor de um deserto que não cessa de se recriar.

é sábado a noite, a chuva ainda agora parou,
resta o silêncio que move o motor do ventilador.
e ainda teus rastros cindindo veios em brasa
pelas  estruturas do apartamento, a planta
da área de serviço ressecada de tanta sede.
e ainda as gavetas como bocas escancaradas
bafejando o invencível cheiro de amaciante e lycra
das tuas roupas íntimas que ali se entricheiraram.

videogames, cinema francês, monografias:
resiste a tudo a imagem da tua faca entre os dentes,
das tuas unhas dolorosamente pintadas dentre as grades do portão.


hoje o amor é esse feijão que cozinha na panela.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

quando este incêndio terminar,
venha aqui antes dos bombeiros,
e não atente ao meu corpo devastado pelo fogo.
procura pela casa ainda em brasa, uma blusa,
uma carta, um souvenir qualquer de mim.


deixa ali meu corpo aniquilado,
não se preocupe com a incandescência
revelando em minha carne calcinada as
marcas das tuas facas, dos teus dentes,
das unhas coloridas, dos teus beijos a queima roupa.


pega algum objeto do meu quarto, leva contigo:
ele será o ovo da fênix,
o meu eu triunfante sobre as chamas.
carrega-o pela tua história mesmo que amanhã
de manhã um novo amor despenteie teus cabelos.


vá embora sabendo que é teu o que possuí:
o que sempre foi o melhor de mim.


***

lembra de mim como alguém que amou te
olhar dentro dos teus vestidos coloridos,
lembra de mim como alguém que criava
mapas do tesouro no teu corpo e,
me agarrando as tuas costas,
sempre marcava com um xis a soberba
geografia da tua nuca descoberta.

sábado, 21 de junho de 2014

dizer não ao cotidiano, querer os dias do caixeiro viajante.
a pele incorruptível das mulheres da gávea.
aquele rosto eurocêntrico de 20 anos atrás
cindindo, hoje, a impiedade das avenidas.
o rosto, outro rosto, que envelhecerá comigo
através dos tempos burgueses.
a noite da zona sul, a neblina que não existe
dentre os prédios, invadindo as lanchonetes.
a tua voz grave me encorajando os pulsos cortados,
ou os faróis de santa rosa anoitecendo outro mundo.
a lapa (ah a rua da lapa), a cerveja, a urina
(fridas kahlos dentro da urina).
o encontro súbito, a solidão do televisor.
os cartazes dos bailes funk em madureira convidando
aos velhos crimes embebidos em álcool e vagina.
acordar cedo, a caneca de café com leite,
um artigo sobre fellini no incansável monitor.
estar em cada gesto de mão que acaricia,
de lado a lado, esta lua rubra.
derramar absurdos sobre a cidade me faria feliz.
as pastelarias encardidas, as manhãs mansas de pequim,
o toque dos dedos e dos olhos da mulher chinesa.
tão perto, mas não aqui: na distância só posso te intuir:
nas músicas que passaram, todas as outras que virão.
me perdendo em fábricas noturnas, casas abandonadas,
prédios de um século, quintais praieiros, e na geografia
errante dos teus braços.
bares de esquina, igrejas escuras sob a manhã.
a cidade a noite: um seurat de neon e led.
na cidade nada nos choca, nem a violência e
nem o amor: na cidade os dois se confundem.
as entranhas do subúrbio, vísceras do concreto mofado.
tu caminha, a pele limpa nestas calçadas sujas,
o teu cabelo num movimento pendular trazem,
como num enigma zen, saudades do que não se viveu.
mini shorts, minissaias, a brisa evola o cheiro
de sexo perfumado por urina e lycra.
helenas sob a luz de necrotério do metrô,
ou ainda sob o sol high definition de janeiro.
o anjo de klee, com sua cabeça torcida, bate suas asas
sobre estes dias do longe, e sente tristeza.
a meia luz quando anoitece, o odor lento
do piso de madeira, o tic tac do relógio incansável,
os quartos do apartamento na memória infantil.
as luzes de poeira e xenon de dentro
do teu carro pelas noites de sonho
(laranjeiras pulsa ainda que adormecendo).
blusa rasgada, barba por fazer, no bolso
alguns trocados, e teus convites querendo me
fazer bordar uma lágrima.

a vida se encurta em tempo e espaço, e eu
sou o grande charlatão, o amante,
o assassino de mim e do outro:
e este é um poema para quando não mais houver.