domingo, 25 de março de 2012

“Hey! Mr. Tambourine Man, play a song for me”


Bob Dylan em Madureira as
6 horas da manhã entre
trabalhadores cansados
beberrões matinais e
pernas de normalistas:

Bob Dylan em Madureira as
6 horas da manhã coloca sua gaita
nos motores dos carros.

Rito de Solitude nº 2


Os solitários tomam café da manhã no
bar mais sujo que encontram.

Desencaixotar as coisas que ela
encaixotou tão cuidadosamente
voltar a preencher o antigo quarto é
um ritual de exercício da dor.
Cada coisa volta a seu lugar
sua gaveta sua prateleira:
menos a vida.
A vida não vem de volta nas caixas
a vida se esquece no outro bairro
nas outras salas
em outra cama
ainda tentando rasgar o halo fino que
separa um corpo do outro corpo.

O cinema agora é um mundo estranho e
no rádio a música que toca diz que
ela vai ser feliz verdadeiramente
estando a salvo de tudo o que sou eu.

Kal-El de Volta a Antártida


“Eu gosto de ficar só mas gosto mais de você”
-Arnaldo Antunes


apagaram-se as luzes do quarto de dormir apagaram-se as luzes do corredor a luz da sala a porta fechada vagarosamente fechado um abraço para quem pode (agora sim) morrer verdadeiramente pois é hora de voltar a fortaleza da solidão onde tudo anuncia a distância onde teu rosto embaça como os vidros canelados sobre a frialdade da manhã mas sua nova cabeleira vermelha ainda vivendo em fogo e calor viva e feroz quando a imagino deflagrada sobre a cama como um incêndio nos travesseiros e teu sorriso que é uma beleza dentro de outra beleza que era teu rosto desencaixotando-se nas fotografias que tu não quis mais são totalmente diversas as fotografias desbotadas do mural onde eu era jovem e cada sorriso é uma agressão e sinto que a vida aqui vive nos sons de fora da casa que nada tem a ver com a solidão dos condomínios mas que também nunca vai ter nada com o teu cuidado e com tua delicadeza e agora não sei se você reparou mas bastou eu ficar sozinho novamente que alguns dias de chuva começaram a acontecer e me colocaram de volta naquela velha cor cinza que a felicidade das tuas aquarelas me salvavam a cada amanhecer.

O-Ren Ishii


Para Samara

O céu da Urca
a chuva como um véu na Praia Vermelha
ainda resiste sem nós?
Fomos para algum continente distante morrer
nas trincheiras de outro país?
Mas resistem ainda teus olhos que
- se recortados de alguma fotografia –
são iguais ao daquela atriz taiwanesa que eu
tanto gosto (e que você tanto odeia) e que
vez ou outra
se me atingem na vertigem do cinema
me imaginam me repaginam essa
Saudade mais forte.

Mas eu sei minha amiga
que os cinemas estão mortos
como estão mortos e enterrados o céu
a chuva as árvores da Urca (ainda os bancos
de faculdade as lanchonetes dos shoppings:
mortos e enterrados).
E sei também que teu sorriso teu riso
derramados através da
Tijuca não alcançam o meu bairro:
vão se perdendo pelo vazio das ruas.

Nossa amizade agora é um relicário.

Cantiga d’Amigo


Estou indo trabalhar.
São seis horas da manhã e a luz
vermelha se esforçando pra existir me
lembram os velhos amanheceres da Lapa.

Ainda alvorece por lá?

O que desejam de mim aqueles arcos para
me assaltarem assim tão forte a
qualquer hora do dia e da noite?
Lembro de copos de plástico e me emociono
lembro de copos de plástico esmagados pelo
peso do silêncio
as barracas que choravam
os meus ouvidos que zuniam no primeiro frio
a cabeça dolorida de álcool.
os bares fechando
os poetas as prostitutas os bandidos os transexuais
os velhos ébrios as moças e rapazes bonitos como só ali
todos já recolhidos (em mim).

O coração ficava satisfeito.

Um ônibus ou outro triturava o meu transe
(e a minha transa) com as esquinas
triturava a quietude em seu motor
e quando tomava um deles eu já sabia:
era hora de voltar a morrer.
Tudo era eu na Rua do Riachuelo aquela
hora da manhã
tudo era eu no que era ruína no Rio Comprido.
O estofado do banco era gelado
a luz era de um cinza fino e
tudo que amei na noite acabada
vinha comigo no retorno a casa e
ficavam latejando poderosas um dia ainda
até murcharem sob o peso das horas cotidianas.

domingo, 11 de março de 2012

Mon Couer


Para C.D.A.

É velho vate
morto e grandioso vate
se me dispo me grito
me exponho assim é
porque meu coração
-ao contrário do teu-
é grande demais.

Nele cabem todas as dores
tudo o que amei
nele cabe o mundo inteiro
(esse mundo que não vivo).
E no entanto aí repousa
um grande enigma:
apesar de toda essa imensidão
como tanta gente já o carregou
(carrega ainda)
na palma das mãos?

Kid Bengala


Quando ela me perguntou quem
eu gostaria de ser se eu não fosse eu mesmo
e respondi sem pensar : “Kid Bengala”
ela achou um absurdo um “poeta dizer isso”.
Eu ri não sei se dela ou de mim mesmo:
ora
se a vida é a busca desenfreada pela
felicidade
não consigo imaginar nenhum homem
mais feliz que o velho Kid.

Meta ta Physika


Dentro do ônibus
mesmo no movimento incessante
meus olhos
em relação a ela
se colocam em repouso absoluto.

Love Is With Your Brother


Ia pagar o pão e o leite preocupado
com a falta de grana mas
a caixa nova do supermercado tem o rosto
dela e deixei na hora de pensar em dinheiro.

Vi ali a Tristessa chapada e perdida
a Tristessa de Kerouac
a minha Tristessa
encarnada em uma caixa de supermercado.

Lembrei do Estácio que era a
nossa Cidade do México chovendo nos
letreiros dos táxis
enquanto ela doidona
chorava bebidas alcólicas
e eu
- triste toda a vida -
embriagava na visão violenta das suas ancas.

Voltei pra casa com o
pão e o leite comprados mas também
havia uma outra sacola com os indícios
dos seus ciúmes e dos seus desejos
o peso indescritível da presença do seu rosto:
mas estes eu tive que roubar do supermercado
pois hoje eu não tenho realmente
- como um dia tive –
como pagá-los.

Notícias do Sul


Soube que ela voltou a andar
por aquele bar
aquele antigo bar que já foi nosso.
Algumas pessoas a vêem sempre por lá
com uma namorada nova e
vem me avisar
e usam o telefone para me dizer
que a viram.

Aqueles foram dias bonitos eu sei
mas eles há muito guardei na
caixinha abarrotada das coisas amadas
que não partem.
Por que então as pessoas insistem em
achar que eu preciso saber?
Por que elas
tão ingenuamente
despedaçam um dia inteiro?

Dia de Reis



Lembro e não lembro que
já fui criança.
Era quando minha avó dava de beber
aos foliões de Reis e minha mãe dizia que
eles raptavam as criancinhas.
Mas eu não tinha medo:
a rua
naqueles longínquos janeiros
quando eles passavam com sua banda
era uma alegria e um pandemônio.
Eu corria pro terraço e os via com a
ternura que ainda os vejo hoje pelas janelas de adulto.

Mãe
hoje te digo:
não eram os foliões do Dia de Reis não!
Conforme passam os anos
é a própria vida que nos rouba as criancinhas.

A Queda


Numa manhã de chuva me apaixonei
profundamente por uma personagem em
um filme do Gus Van Sant.
Mas minha mulher chegou e gritou comigo por
não ter pagado as contas e eu
saí para quitar o que podia.
A chuva na rua era triste do jeito que
eu gostava e me perguntava
como uma poeta (capaz de se apaixonar
lindamente por um personagem de cinema)
se tornou esse medíocre covarde cujo
pensamento sobre as compras do
mês andam carcomendo
vorazmente
a alegria da poesia.

Daemonium Meridianum


Todo dia
ao meio dia
um demônio vem tentar me beijar.
Mas eu sou um bandido pervertido e violento e
ele se espanta com o quanto eu
posso ser sujo e ressentido.
Ele usa um vestido de brilho escuro e
com suas mãos de veludo
quer me estrangular a vida inteira.

Ele tem o meu rosto.

Ele sou eu
absolutamente
no espelho das horas.

26 de Janeiro


Este poema nada mais é que
um amontoado de letras (des)ordenadas
numa folha de papel.
Elas ficarão escritas-inscritas nesse
quarto nesse corpo e
daqui jamais sairão.
Este poema não se descolará do sulfite
não abrirá a porta
não tomará o ônibus e
muito menos cruzará a Zona Norte.

Este poema não a atingirá como
me atingiu naquele dia de janeiro
- há anos atrás -
a bala que ela meteu
vagarosamente no meu peito
naquele Verão em que tudo destroçava
silenciosamente quando seu
corpo perfurava a claridade das
manhãs de óleo diesel.

Este poema nunca será tão
forte quanto as saudades que
eu sentia ela ter de Portugal.
Nunca será tão vivo quanto a
cor das suas coxas naquelas fotografias
que tive que despedaçar.
Escrever este poema
- qualquer poema –
é perder tempo e sossego.

Nenhum deles nunca será aquele 26 de Janeiro.

Pequena Morte na (Eletri)Cidade


O estampido:
um clarão e o movimento para:
o transformador de luz elétrica cuspindo
fumaça e abaixo o pombo caído.
É uma manhã de segunda-feira e
refeito o susto a vida da rua continua.
O entra e sai das lojas e dos bancos
o cruzar correndo frente aos automóveis infinitos...
Mas para o pombo morto
eletrocutado
nunca mais essa chuva que cai
nunca mais a chuva.