sábado, 27 de fevereiro de 2010

Consistência da Solidão



Durante a chuva
os balanços do parquinho no Jacaré
pendem imóveis
vazios.
Nesta manhã de chumbo
a caminho da asfixia do trabalho
meus olhos tristes são
as crianças em dia de sol
que ali não estão.

Gamboa



No amontoado de casas da Gamboa
tudo é ruína:
as ruas cheias e imundas
as gordas putas de 20 reais nas
portas dos hotéis de 20 reais
vira-latas magros e bares de sarjeta...
Tudo é cinza e concreto desgastado
nas paredes velhas da Gamboa
só uma pontinha de mar no
fim de uma rua destoa de tudo.
Só uma pontinha de mar...

Imposição das Mãos



Tudo tão pequenininho:
a enseada de Botafogo
(de noite é como meu quarto:
só o vácuo de um breu)
a velocidade dos faróis rasgando o Aterro
as luzes do Morro da Urca parecendo
as únicas estrelas que teimaram acender.
Tudo cabendo aqui na palma da mão.
E essa mão no vidro do ônibus
quase captura o horizonte inteiro
quase torna a noite do mundo palpável:
a mão de dedos estendidos para
instilar o amor e saudade no
ficar para trás da paisagem diminuta.

Idealismo Alemão



Ela era linda e magricela
e veio até mim perguntando
qual era a melhor do edição do
“O Mundo Como Vontade e Como Representação”.
Pois bem
o que quero dizer é que
1) ela era linda
2) esquelética
3) e ainda iria começar a ler Schopenhauer
Depois que ela foi embora
-levando o livro na sacola-
eu percebi que a sua aparição deixou
pelo resto das horas
uma alegria um alívio:
a beleza cindindo o sufoco do dia.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A Parada da Bateria


Pergunto onde estão teus tamborins?
-Zeca Baleiro

O carnaval chegou esquisito.
É como se fosse chegada a época
em que ele não poderá mais me pertencer.
Passei os dois últimos dias perdido
estranhamente esvaziado
no meio da folia.
Até a cerveja se recusava a embriagar
ela trazia em cada gole uma ânsia de vômito
tudo era cansaço de tudo...

Eu acho que esse verão Dionísio não
veio me visitar e
nem pôde mandar notícias...
Deve ter morrido no caminho.
De cirrose hepática ou de sífilis.

Por isso hoje
nesta segunda-feira quis o retiro:
vejo o sol que arde no silêncio das casas vizinhas
e sei que esse é o mesmo sol que queima os
meus amigos lá inseridos
na pele e na batida do carnaval...
enquanto eu aqui nesse sofá
-os cômodos todos dormindo-
bebendo coca-cola e assistindo Pulp-Fiction
vou me arrancando de mim mesmo
a unha e dente
desse corpo onde eu já não me caibo mais.

Les Yeux Sans Visage


Essa semana amanheci sombrio a cada dia.
Sou composto de silêncios mas
estava ainda para além disso:
estava hermeticamente fechado em mim mesmo.
E quem saberá o quanto isso pesa?

Talvez seja o traço de uma melancolia mais
densa que se avulta
ou talvez não seja nada mesmo
(talvez apenas o início do Retorno de Saturno).
Mas voltava do trabalho afogado na
noite do subúrbio
triste como as luzes acesas dos corredores vazios
das escolas públicas.

E aí no fone de ouvido chega de surpresa a
Bebel Gilberto e me aplica uma rasteira
fazendo a paisagem começar a tremular
quando sua voz aos poucos vai lacrimejando
todo esse meu olhar.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Bola Preta na Praça Vermelha




Sábado de manhãzinha
sentado no portão da minha casa
sem nada para fazer além
de mastigar o tédio e
sentir a brisa abafada que anuncia
um dia vazio.

Logo vai ser carnaval e o
verão se impõe e traz
todo o seu calor
todo o seu azul e amarelo que
acendem as coisas.

É manhãzinha e passei a noite
lendo uma antologia de poetas russos.
Poetas de nomes complicados
-que não guardei nenhum-
mas que eram tristes eles todos
(também pudera
com toda aquela neve
com toda aquela revolução)...

Eu sabia que àquela hora
o chão da Rio Branco estremecia com
o Cordão do Bola Preta
e que meus amigos no meio da massa
sorriam e pulavam
alegres e embriagados
enquanto eu me comprimia no vácuo
de um quarto sentindo na densidade
toda ausência
toda perda e vontade.

Mas agora
nessa manhã azulzinha de sábado
sentado no portão da minha casa
eu sorrio meio de lado e
sinto eletrificar cada pêlo do meu corpo
no anseio do carnaval que se aproxima...
mas é tudo só por um instante:
é uma sensação fugaz e que passa
como passam por mim essas brisas abafadas.

Tenho calor e a iminência do carnaval
(o total inverso da neve e da revolução)
mas sentado no portão da minha casa
correndo os olhos pelos paralelepípedos desertos
eu estou triste como um poeta russo.

O Yin Yang


A essa hora ela deve estar na
brisa fresca do seu imenso quintal
cortando alguns galhos
alimentando seus peixes...
fazendo tudo perfeito como ela
sempre fazia tudo
(quando arrumava as coisas do meu quarto
quando arrumava a minha vida).

Mas ela não anda mais por aqui...
pegou sua espaçonave e deixou
este meu asteróide onde cultivo desertos
e semeio o cinza de alguns dias de chuva.
Ela voltou para o seu planeta-jardim
onde ela cuidará de um mundo
que é inteiro setembro e primavera
e todo ele sabe que será feliz porque
será moldado no carinho das suas mãos.

E eu
único ser vivo nesta aridez silenciosa
volto a ser o seu oposto
fazendo aquilo o que sempre fiz:
o não saber cuidar de nada e nem de mim
apenas esta carnação da solidão
o não-existir de um quarto
desejo contemplação e melancolia.

Lá no planeta dela
(nas noites mais claras eu posso
vê-lo brilhando em azul pela minha janela)
ela pertence a todas as coisas
se entrega no seu amor absoluto
e a vida inteira anseia pelo seu riso.

Porém de tudo aqui
nada sente minha falta...
passo pelos dias vagando entre galáxias infinitas
um menino sentado na beira de um asteróide
escrevendo para que ao menos essa
folha de papel possa saber que existo.