segunda-feira, 23 de maio de 2011

(Pre)Sentimentos


Virão.
Virão eles todos.
Por entre as ondas da Praia Grande
dos dejetos e das lixeiras eles
virão.
Das nossas noites exaustas (e sobretudo
das nossas noites exaustas)
das guerras santas na televisão
cavalgando suas antenas parabólicas
eles virão.
Dobrando as esquinas do sossego
por entres as mãos do malabarista
por entre as pernas da bailarina
eles logo logo virão.
Do frio deserto no Aterro noturno
dos beijos falsificados das oito horas
dos teus olhos vermelhos injetados de maconha
eles virão.
Do nosso sangue nos lençóis
da voluta cor de cobre dos teus cabelos
do filme antigo numa tarde de terça-feira
eles em breve estarão aqui.
Entre as páginas de uma revista pornográfica
entre as folhas de “Cem Anos de Solidão”
são eles que virão.
Das listras da blusa preta do poeta morto
do céu descortinado do Leme
no barulho do ventilador no quarto de dormir
eles com certeza irão chegar.
Em cada palavra engolida a seco
no bolo dominical da minha mãe
por entre os Arcos debaixo do bonde
sim!
Eles virão!
Das portas das casas dos parques dos
supermercados dos pontos de ônibus e
das bancas de jornal
eles sairão e farão dilúvio.
Essa é a verdade do mundo: eles
estão em todo lugar a espreita
se esgueirando de mansinho para nos tomar...
e tolo será aquele que
na face da Terra
tentar ficar ileso aos seus assaltos.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Sarah Bernhadt


Abro um livro de história da arte
e teus olhos que iluminaram toda
a fotografia de Nadar
lançam essa luz de sol que rasga
o escuro do quarto inteiro.

Olho pela janela e te imagino caminhando
por estas ruas cariocas como o
fazia pelas passagens parisienses:
com a sua altivez de dez mil musas.

E então eu me curvaria perante ti
-prostrado de tua beleza-
e escreveria um outro poema que
não este simplório:
um poema onde só tua visão viva poderia
como um raio
terrivelmente me atingir
(como fez a Mucha a Toulouse Lautrec
a Grasset a Clairin aos Nadar pai e filho).

E talvez fosse apenas mais uma dentre
cem obras que levam o teu nome...
Mas seria um poema tão sublimado
que se tu o quisesses mademoiselle Bernhadt
poderia repousar o fogo inquietos dos
teus cabelos (e assim infiltrar seus fios
vermelhos) entre as almofadas daqueles versos.

Das Pessoas e das Casas


Pessoas são como casas:
podem ser vazias ou
habitadas por dentro.
Sentimentos nos habitam como
famílias felizes ou infelizes.

Como há casas em escombros
já conheci pessoas demolidas.

Existem pessoas silenciosas
abandonadas de vida
pessoas antigas e cheias de
rachaduras no seu interior.
Essas são tristes até não poder mais...
essas são como as
casas abandonadas sob a chuva.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Estudos de Caso


Para que houvesse arte também
foi preciso Keats tossir sangue até a morte.
Também foi preciso Villon escorregar
para fora da forca
e Mahler levar chifres de Mondrian.
Foi preciso Bukowski comer todas aquelas
putas velhas com bundas de garotinha
e Van Gogh meter uma navalha em Gauguin
e Verlaine uma bala em Rimbaud (tudo é amor).
Foi preciso o assassino Caravaggio cair na
porrada por todos os bares da Itália
e Kerouac se encher de benzedrina nas
horas de solidão.
Foi preciso que o maior amor de Baudelaire
(depois da mãe) fosse Paris e
uma prostituta mulata chamada Jeanne Duval.
E para Schopenhauer um poodle chamado Maya.
E para o grande visionário Blake o
Deus mau que ele via pela janela (neste caso
pode ser ódio também).

É preciso desassossego e fúria para
que haja a arte.

É preciso todas essas
paixões embebidas em fogo e água.

De Dentro da Vida III


Um gato caminha no posto de
gasolina abandonado ao meio-dia.
Lento e indolente
alheio ao transito obsessivo e
a algazarra dos estudantes.
É só um gato de rua
só um gato...
Mas mais que qualquer um de nós
ele é o senhor do seu dia.