quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Memórias para um Café da Manhã


I
Abro a janela do quarto de
estudos pela manhã
e a torrente de sons urbanos
invade o apartamento.

Começo a escrever esse poema
apoiado num “Obras Completas
De Michelangelo” .
E nessa manhã insípida eu penso
que
poucos homens houveram no mundo
tão fortes
tão apaixonados
tão lindos
quanto Michelangelo.

II
Meus pensamentos não param.
Todo o tempo essa incansável máquina
bombeando imagens e afetos e libidos
(as vezes gerando um mal-estar
as vezes um pau duro).

Quando acordo de manhã os pensamentos
vêm em profusão
desconexos
todas as belezas
todas as sujeiras
são 15 minutos de pensamentos acumulados
de uma noite inteira em que não pensei
porque dormia.

III
O dia de domingo é lindo.
Lá na rua eu sei que as famílias
estão sob o sol
os cachorrinhos passeiam com seus donos
as crianças correm em seus triciclos.

E eu aqui
no alto do sexto andar
acorrentado a esse silêncio
preso entre os dentes do Tempo
(que não me mastiga pois congelado)
para além do amarelo do dia
lanço pela janela meu olhar mais sombrio:
sou um nosferatu melancólico que
sente saudades dos séculos em
em que podia andar perdido
por baixo da pele da noite.

A Câmara Escura


I
A chuva cai pelas ruas nesta
tarde de sábado que nunca
mais se repetirá.
Um salão de beleza
um bar com sinuca
a mocinha de amarelo
a menina do pastor alemão
(vê-las agora jovens demais se
assemelha a uma idéia de dor)
tudo dentro da chuva...

Olhei as velhas ruas de Cascadura e
quis seguir por elas novamente
vestindo minhas melhores roupas
usando meu melhor perfume
para encontrar os amigos de uma vida
para encontrar as meninas de uma noite.

Mas estes são desejos de dias que
correm numa realidade alternativa
e quem os pode viver é só
o eu da possibilidade
pois esta corporalidade aqui
-a que sente este poema chegar-
é um reverbero de memória dentro de
um lugar de desmemoria:
é como o petrificado instante das
fotografias esquecidas numa caixa.

II
As fotografias numa caixa
onde ela nem me olha mais
mas eu no entanto
ainda posso vê-la:
um biquíni azul numa praia
num dia de verão em 2006
que como qualquer outro dia
nunca será igual a nenhum dos
que existirão.

III
Ela se pintou quando quis
que eu a fotografasse.
Ela nunca se pintava.
Ela se olhou no espelho da clínica.
Se olhou e ajeitou os cabelos.

A fotografia resistirá ainda
mas o centro do Rio
a Pavuna
o metrô de Maria da Graça
já nem se lembram mais
daquele fim de tarde.