segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Trenodia para um Velho Pirata


Queria o poema que abarcasse
- cheio de beleza -
essa súbita melancolia mais forte.
Queria o poema que abrigasse o
cerne dessa noite fria onde tudo se
contorce dentro de uma fogueira indizível.
Queria o poema que reafirmasse que
no poema tudo é ausência
que me perdi das minhas paixões
que anseio novamente navegar.
Queria o poema que dissesse sem desvãos
- mais do qualquer outro já disse -
sobre o farol aceso desses dias mortos:
-Mares noturnos!
Amores de cais!
Eis aqui de volta teu marinheiro-poeta
este trapo!

Patetismo



Um sentimento? Paixão. Não não o amor que seria a resposta politicamente correta a esse tipo de pergunta.O amor não é um sentimento o amor é uma trama obscura. Bem ao contrário da paixão que é clara límpida e quente como o sangue de um fuzilado. A paixão é tempestade de verão: efemeridade derrubando casas afundando navios. O amor é chuva fina dia adentro: constante mas não cria estardalhaços. Por isso não desejo nada que não seja apaixonadamente: quero apenas as coisas que me ponham escombros me interessa muito mais as coisas que não duram.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Cry Little Sister


Uma imagem agora é tua única presença
uma imagem que fala.
Mas eu sei que você não é mera filosofia e
nem tela de cinema quando vejo
espalhadas por Madureira
as migalhas daquele pão não comido mas
que tu me ofereceu mergulhado num copo de lágrimas
o pão que triturei no espelho amnésico dos
banheiros de shopping.

E no território dessa distância
há dias em que a substância do mundo
se transmuta em estranha consistência:
todas as coisas se constituem do pó que são
teus silêncios
tuas lacunas
teus parágrafos
a tua ausência pulverizada.

Vã Filosofia


Enquanto ela dirigia insandecidamente
sempre me pedia pra falar de filosofia.
Quem sou eu pra falar de filosofia?
Mas mesmo assim eu tentava:
Era Nietzsche desviando dos carros
Heidegger parado nos sinais
Schopenhauer a cem quilômetros por hora.
Eram alemães mortos pela Avenida Brasil inteira.

Pracinha de Saquarema


Na pracinha de Saquarema à noite
se avistavam estrelas falsas:
eram as luzes frias das bóias perdidas
no meio da inexistência.
Na pracinha de Saquarema
entre barraquinhas de pipoca e cachorro-quente
eu desejei todas as meninas.
Mas só as tive salgadas
cheirando a mesma maresia que carcomia os barcos
e que carcomia as pilastras onde os casais
quase fodiam dentro da brisa gelada do beira-mar.

Elogio-Elegia para um Puteiro


O único puteiro do bairro pegou fogo.
Como pode um bairro com tantas padarias
farmácias lojas de departamento etc etc
existir sem um único puteiro?
Quase não é possível romance entre os pães
ou
poesia entre os cabides da C&A
ou
exercitar o desejo comprando analgésicos.
Mas um puteiro era o locus privilegiado
dessas coisas tão caras a vida.

Mas pelo menos
ninguém poderá dizer que
pra um prédio pra uma casa
- ainda mais pra um puteiro -
um incêndio não seja o fim mais romântico.

Senhsucht


o quero ser triste
Como um poeta que envelhece lendo Maiakovski
Na loja de conveniência

-Zeca Baleiro

Lojas de conveniência são lugares onde
sou triste pronunciadamente.
Com sua luz cinza
seus pães abandonados e
seus funcionários sonolentos
elas afirmam que existir é um esforço descomunal.

Lojas de conveniência me falam ainda
de coisas que não permanecem
que tudo passa por essa vida
como na estrada escura ali adiante
onde vez em quando rasga o sereno
o instante de um automóvel furioso.

domingo, 2 de outubro de 2011

Séverine Serizy


Pensei em pinturas barrocas:
no cubículo escuro
a luz lilás deslizando em tua bunda
e arroxeando o teu cu moreno.

A Persistência da Memória


Das mulheres passadas já quase não
resta sensação ou vívida lembrança.
Tudo é nebuloso como se
só houvesse havido na esfera do sonho.

Das mulheres passadas só lembramos
o nome a cara e talvez a voz
e mais nenhuma impressão:
é como se não as tivéssemos vivido e
sim as assistido no cinema.

E de tudo o que fizemos
fica uma tristeza branda
meio amarga meio translúcida
quase como um copo esvaziado do uísque
onde o gelo ainda permanece intacto.

Polaróides


Entre a fumaça do caminhão que
desvanece em volutas acinzentadas
cabelos pretíssimos ondulam e
cerejeiras rosadas que florescem:
há beleza no dentro da cidade.

E nos cartazes eleitorais
nas placas das pensões abafadas
a tua presença permanece como um
nome impresso em tintas que desbotam.

São Cosme e São Damião


“Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!”

-Casimiro de Abreu

Como é beleza poder ver todas
essas crianças peregrinando atrás
de saquinhos de doce com a
resolução de cruzados rumo a Terra Santa
Como é lindo vê-las pelas esquinas suburbanas
todas elas sujinhas
cabelos desgrenhados nas meninas
pele acesa de suor nos meninos
correndo debaixo do sol idoso de setembro.

Elas gritam.
Suas gargalhadas ecoam pelas geometrias da rua:
uma matilha de bandoleiros invadindo vilarejos
alheios a fila aflita do pronto-socorro
ao trânsito absurdo de trabalhadores mortos
as contas que mesuram o viver bem de ninguém.

São todas crianças pobrinhas
(crianças ricas correm atrás de doce?)
e que um dia serão proletários
desempregados
professores
traficantes
mães e pais...
Mas só por hoje
tudo é uma alegria de infância:
hoje os carros e lojas e postes e outdoors
observam e invejam calados a
verdadeira vida que pulula nas calçadas.

Como Cortar Uma Garganta Passo-a-Passo


Maldita internet e essa sua
imaterialidade que não me permite
amassar essas tuas mensagens
rasgar em pedacinhos os teus recados
que denunciam a vida fora nós e me
deixam aqui nesse desvario a fogo lento.

Mas o que você não sabe é que
sou capaz de fazer um escândalo na
porta da tua casa
de quebrar teus copos
queimar teus armários
rasgar tuas roupas e
- o que seria o fim pra você e um prazer pra mim -
destruir tua coleção inteira
de CDs de bandas moderninhas!

Ninguém pode supor mas
essa minha costumeira calma é só
imagem e superfície:
pois se me esquece por qualquer coisinha à toa
por baixo da pele eu viro o bicho que
vira uma mulher ferida!

Musa Promíscua


Ela comia médicos
advogados
bandidos
mecânicos
motoristas
etc etc.
Ela que já teve na plenitude da
noite voraz mais de cem homens
e dentre eles
até mesmo um poeta
(quantas mulheres no mundo poderão se
gabar de ter tido um poeta
- essa espécie semi-extinta e melhor amante de todas -
no alto-mar da cama?).

Por isso na rua
no bairro
no trabalho
ela era uma muito mal falada.
Só que isso eu nunca entendi bem...
se ela era tão “piranha”
por que então na rua
no bairro
no trabalho
ela era a mais altiva de todas as mulheres?

22 de Setembro


“And my soul from out that shadow that lies
floating on the floor
Shall be lifted—nevermore!”

-Edgar Allan Poe

“O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais”

-Caetano Veloso

Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Álvares de Azevedo morreu de tísica poética aos 21
Byron de febre apaixonada nas
guerras gregas ao 36
Hemingway
ah Hemingway! Esse teve mais estilo:
estourou a cara com uma espingarda aos 60.

Mas que lógica é essa que nos furta a eternidade?
O que é o tempo se não nos é dado a conhecer
cada pequeno acontecimento?
Ando procurando a juventude que
se perdeu irremediavelmente.
Perdeu-se nas noites frias e seus
copos ébrios
nas coxas recendendo a colônia das mulheres
nas ruas desertas onde as madrugadas duram cem anos.
Ou
perdeu-se também nos dias quentes
nas praias claras no triste encontro com o mar
nas casas de sábado cheirando a azul
nas ruas movimentadas onde sempre há
um demônio espreitando ao meio-dia.

Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Chegar a essa altura e não ter onde
cair morto
não ter ânimo de nada
não ter nem mesmo o que fazer a não
ser correr atrás de dinheiro
escrever um ou outro poema ruim e
arquitetar crimes hediondos na primeira hora da manhã.

Tardes dentro de tardes
morrendo em jogos de videogame
morrendo na filosofia apaixonada dos alemães
morrendo na poesia que só se vive pela memória.
Morrendo em mulheres que passam
morenas
negras
pardas
ou
brancas como ela e com o
mesmo perfume de bruxa fajuta.
E talvez ainda
com a mesma bocetinha rosa
do mesmo tamanho
do mesmo gosto
com o mesmo cheiro.

Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Há menos que esse ano um carro me atropele
ou
eu seja escolhido por uma doença incurável
ou
um assassino meta uma bala no meu peito
ou
eu resolva finalmente atender o convite da
janela para o súbito vôo
ainda haverá no ano que vem mais um
dia de sol negro e uma diferente forma
de se deteriorar.

30 anos e não ser mais que uma sombra que
qualquer facho de luz pode aniquilar.
Passaram-se algumas estações e
ainda estão lá os azulejos azuis.
Através da janela eu ainda vejo os azulejos azuis
daquele apartamento da rua cotidiana.
Os azulejos azuis que presenciaram tantas vezes o banho dela
os xampus atrás do vidro canelado que
ensaboaram seus cabelos...
Mas ela agora anda numa ilha do Velho Mundo
escutando Goo Goo Dolls e
cuidando de animais doentes mas
felizes por receber os cuidados das mãos dela.


Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Ser íntimo dos vilarejos bombardeados da segunda guerra
das repartições públicas fechadas
da carne azul da Região dos Lagos
do cheiro de giz de cera dos jardins de infância
das famílias chinesas das pastelarias.

A cada manhã o céu é um rasgo entre os prédios
janelas emparelhadas e olhares que
se entrecruzam mas se recusam a permanecer.
Os salões religiosos na noite silenciosa
os puteiros de Madureira na noite terrível
trovejam dentro de mim suas sacralidades gêmeas.
A Frei Caneca e seus faróis vermelhos
o Campo de Santana e seus milhares de gatos
como espíritos sem descanso embaixo da chuva turva e
na minha boca um gosto de caldo de cana e tequila
um gosto que ficará ressoando mil anos depois de mim
em bocas que ainda não nasceram.



Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Logo estes óculos
este semblante preocupado
me darão o ar sério
austero
de escritor de professor
velho e decadente.

Sozinho em um bar ou
no abafado hermético de um quarto
escutando alguma diva morta
(conheci Piaf através de
uma amiga melancólica nessas
nossas conversas sobre a validade
da vida do amor etc etc)
logo não mais existirá o rapaz de riso largo
-e que mesmo agora só vejo nas fotografias-
não mais o corpo jovem e esguio
esculpido pelas horas de suor e dor
das academias...

O que haverá nos instantes do ocaso?

Ainda carnavais?
Ainda salas de cinema?
A possibilidade de romance?
Praia?
Lapa?
(Porra, como isso dói...)

30 primaveras e ainda não sei responder nada
mas sei que o amor
-mesmo que seja mais uma vanidade -
torna tudo eterno em um instante
(e fora deste instante tudo é mediocridade).
Portanto
enquanto houver amor em tempos tristes
enquanto houver poesia em dias sombrios
eu haverei de ser maior do que qualquer morte.