sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Tristitia (ou Do Assassinato Como Uma Das Belas-Artes)


Eu amava as suas sendas tortas
a largura do seu sorriso
eu amava os s(m)eus assassinatos
e você sabia.

Você adorava me ver enforcado na
árvore do seu quintal
meu corpo dependurado balançando
enquanto você batia palmas.
A minha morte era o seu espetáculo.

Eu amava a sua nudez no banho
a sua nudez sonolenta na cama
o seu corpo imenso
(maior que o box do banheiro
maior que a cama
uma galáxia inteira) e
imaginava o cinema:
via você dançando no Blaue Engel
eu fantasiava que você era
a minha Cabíria
a minha pretty woman
a minha belle de jour...
Pois era isso que você era:
uma puta cinematográfica
hollywoodiana
francesa
alemã.
Era todas as mulheres e
portanto
todas as mortes possíveis:
as mais solitárias
as mais doces
as mais duras...

Eu amava os seus cabelos como
garras de leão rasgando o seu rosto
escondendo a sua cara inteira menos
o meio-sorriso malicioso.
Eu amava a sua mão de homem
os seus dedos grossos brutalizando a
fragilidade das coisas.
Eu amava sobretudo o seu
jeito freudiano de ser
quando todos os seus minutos gritavam
em uníssono:
“Todo prazer é erótico!”

Eu amava a sua fenda estreita
a largura do seu sorriso
e
mais que tudo
eu amava e odiava o seu diário suicidar-me.

A sua existência
a sua possibilidade
o trajeto de um lado a outro do seu quadril
já era por si só
o embate de uma vida inteira.

Elegia para Nix


Para Gabriel

Onde agora existe a noite que
nos acolhia irmão?
A noite que nos sussurrava seus
segredos e
em troca acobertava nossos crimes:
você lembra que
nas veias da noite caminhávamos como
dois bandidos
como vagabundos
vira-latas de rua?
Mas éramos também reis
coroados no cansaço da madrugada
éramos deuses embriagados de vinho (barato)
e cerveja (de um real).

E agora essa velhice tão cedo
esse silêncio
essa imobilidade ganhando os
dias palmo a palmo.

Por onde andará a noite geradora
dos nossos interditos?
As horas em que éramos cúmplices
de bebedeira
de luxúria...
de vida afinal.
Onde cada luz de poste era
uma iluminação nirvanica
onde tínhamos um estoque de risos
e éramos ao mesmo tempo garotos sem rumo
e também homens lamentando o passado.

Naquelas noites em que tudo colidia
em desejo e
no desejo encontrávamos uma
estranha forma de sermos felizes
(a noite nos diz de mais de desejo que
qualquer outra coisa).

E quando a manhã nos entregava o
seu silêncio
apenas nós sabíamos o que havia
se passado no cerne agudo da noite.
Apenas nós
dançarinos dionisíacos que voltavam pra casa
exultantes feridos e
embriagados...
Era nossa Walkabout.

Essas horas irmão
talvez hoje
rolem das mesas nas últimas garrafas
dos últimos bares do mundo.
Mas o nosso amor (essa transcendência)
esse jamais escorrerá pelos bueiros.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Locus


Um velho enquadrado no escuro da
janela do seu apartamento.
Em um bar de esquina um chope gelado
num dia quente de chuva.
Um rapaz gay correndo e brincando
me arranca um sorriso.
O instante do beijo debaixo
de um guarda-chuva azul (a única
cor azul no dia).
A mulher que espera na porta do
shopping me fala mais de saudade
que de anseio.

Imagens e afetos que
no redemoinho das horas suburbanas
nos diz:
prosaico.
Mas o olho do poeta contradiz
o cotidiano absoluto:
é no cerne desses fenômenos que
a poesia existe violentamente.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Imagens Sacras


I
A sexualidade trágica de Schiele me domina.
Schopenhauer na cama ejaculando
pessimismos no lençol.
As flores murchas do criado-mudo
sussurrando quartos de motel.
Antigos abismos me propondo absurdos
no primeiro pensamento da manhã.
O arroz da panela se movendo como os
vermes do saco de lixo que esqueci de pôr fora.
A paz estilhaçada nas ruas amanhecidas
do Engenho de Dentro.
O desejo fazendo circunvoluções nos
pontos de ônibus.
Lâminas faíscam nos tetos dos carros
enquanto duas estudantes lésbicas e lindas
se beijam no último banco
fazendo Artaud sentado ao meu lado sorrir.
Ormud e Ahriman se digladiando no
céu de chumdo do Riachuelo
enquanto meninos empoeirados escrevem com mijo
o nome de Rimbaud sobre muros grafitados.

II
E numa noite submersa ela me ligou
chapada de álcool e de Blake e
fui encontrá-la sugando águas dos olhos e
de um chafariz.
Ela me propôs o teste de Rorscharch com
dez módices usados
enquanto a Sofia Copolla nos filmava
(mesmo eu dizendo que preferia o Murnau).
Quando desmontaram o set de filmagem eu estava mesmo
era no meu próprio quarto onde anjos depenados
giravam cuspindo rosas e febres
e na penumbra eu vi que nenhum deles
tinha o rosto dela.

Ideologia do Amor


“Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum trocado pra dar garantia”
-Cazuza/ Frejat

Deveriam pagar salário aos
que se amam de verdade
(complementado com um bônus
para o homem comprar flores
para a mulher comprar lingerie).

Ter ouvido ela me dizer isso sorrindo
(se referindo a nós dois)
inundou o instante de tal beleza que
abraçado a ela
acreditei que repousaria no seu corpo
eternamente sem esperar pagamento:
ela nos alimentaria
e nos vestiria
de todo esse amor que ela planta
nas pequenas coisas do dia a dia.

Recorte da Rocinha


Todos eles já homens (mesmo
os que só devem ter quinze)
mas carregando suas armas
(suas pistolas prateadas seus fuzis negros)
parecem crianças que esqueceram de crescer
prontas para jogar seus jogos hobbesianos.

Movem-se como deuses da morte
(como são todos os deuses da
história do homem) com seus olhos
injetados de paranóia e fúria.
Atocaiados nos becos
afrontando a neblina branca que
desce o Corcovado
expõem seus corpos negros.
Gregos.

Descamisados.

Influxo da Manhã


A luz vagarosa perfura
as cortinas
persegue os últimos vestígios da noite
que ainda se escondem nas frestas
da arquitetura
embaixo dos carros
debaixo da pálpebras pesadas dos
que acordam
(mesmo sem despertar).
Amanhece mais um dia e
o primeiro pensamento que
me assalta é:
porque amanhece?

Penso se a manhã de outros países
(que não amanhece
nesse momento) será
a mesma que essa...
será igual para uma estudante chinesa?
para um caçador Massai?
para um operário dinamarquês?
Deles
no entanto
eu não sei
não poderei mesmo saber.
Mas sei das manhãs da senhora que
todo dia
lava seu quintal no Engenho Novo
sei das manhãs da mulher que
todo dia
fuma numa varanda da Lagoa.
Sei da fila de estudantes no ponto
de ônibus em Laranjeiras
das pernas de creme da estudante
que entre as meias e a saia
são da cor lenta da manhã.

E daqui desse amanhecer no Jardim Botânico
até a noite no (talvez no) Méier
tudo será como é desde o início:
a duração de um embate.
Mas quando o crepúsculo se abater novamente
calando a velocidade do dia
enquanto todos sentem na pele a
proximidade do escuro e do sono
(quando não houver mais nenhum
resquício da manhã na hora das coisas)
será o momento de acordar para
os vampiros as putas e os poetas:
pois apenas eles
com os olhos marejados de tanta madrugada
sabem como comungar com
a tessitura íntima da noite.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Memórias para um Café da Manhã


I
Abro a janela do quarto de
estudos pela manhã
e a torrente de sons urbanos
invade o apartamento.

Começo a escrever esse poema
apoiado num “Obras Completas
De Michelangelo” .
E nessa manhã insípida eu penso
que
poucos homens houveram no mundo
tão fortes
tão apaixonados
tão lindos
quanto Michelangelo.

II
Meus pensamentos não param.
Todo o tempo essa incansável máquina
bombeando imagens e afetos e libidos
(as vezes gerando um mal-estar
as vezes um pau duro).

Quando acordo de manhã os pensamentos
vêm em profusão
desconexos
todas as belezas
todas as sujeiras
são 15 minutos de pensamentos acumulados
de uma noite inteira em que não pensei
porque dormia.

III
O dia de domingo é lindo.
Lá na rua eu sei que as famílias
estão sob o sol
os cachorrinhos passeiam com seus donos
as crianças correm em seus triciclos.

E eu aqui
no alto do sexto andar
acorrentado a esse silêncio
preso entre os dentes do Tempo
(que não me mastiga pois congelado)
para além do amarelo do dia
lanço pela janela meu olhar mais sombrio:
sou um nosferatu melancólico que
sente saudades dos séculos em
em que podia andar perdido
por baixo da pele da noite.

A Câmara Escura


I
A chuva cai pelas ruas nesta
tarde de sábado que nunca
mais se repetirá.
Um salão de beleza
um bar com sinuca
a mocinha de amarelo
a menina do pastor alemão
(vê-las agora jovens demais se
assemelha a uma idéia de dor)
tudo dentro da chuva...

Olhei as velhas ruas de Cascadura e
quis seguir por elas novamente
vestindo minhas melhores roupas
usando meu melhor perfume
para encontrar os amigos de uma vida
para encontrar as meninas de uma noite.

Mas estes são desejos de dias que
correm numa realidade alternativa
e quem os pode viver é só
o eu da possibilidade
pois esta corporalidade aqui
-a que sente este poema chegar-
é um reverbero de memória dentro de
um lugar de desmemoria:
é como o petrificado instante das
fotografias esquecidas numa caixa.

II
As fotografias numa caixa
onde ela nem me olha mais
mas eu no entanto
ainda posso vê-la:
um biquíni azul numa praia
num dia de verão em 2006
que como qualquer outro dia
nunca será igual a nenhum dos
que existirão.

III
Ela se pintou quando quis
que eu a fotografasse.
Ela nunca se pintava.
Ela se olhou no espelho da clínica.
Se olhou e ajeitou os cabelos.

A fotografia resistirá ainda
mas o centro do Rio
a Pavuna
o metrô de Maria da Graça
já nem se lembram mais
daquele fim de tarde.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Melancorgia


Eu sou um corpo.
Olho minhas mãos escuras
magras
que reafirmam:
eu sou um corpo.
Estas mãos que escrevem para
expurgar todos os pesos
para tornar mais leve o tempo
(está no meu corpo o poema?
É uma extensão do meu corpo o verso?).
Estas mãos que
presas aos braços
são como o resto todo:
sangue e osso e carne e pêlo e desejo
que um dia não serão nada além
do que pó (mas que voltará a residir
na constituição de outros seres).

Mas se me olho inteiro pela manhã
eu me pergunto:
é só isso o corpo?
Onde ele pode estar circunscrito agora
além de aqui nos
limites desse banheiro?
No reflexo desse espelho?

Concluo que ele é um ente que
vê e sente
e a tudo captura
e a tudo mescla e
se dá
vivendo nessa orgia dos sentidos
se prostituindo pelas coisas do mundo.
E tudo isso que vai ficando retido
vai semeando melancolias
(e a melancolia?
Ela cabe no corpo ou
o corpo é que lhe cabe?).

Talvez seja correto afirmar
que meu corpo também é
só uma aparência no mundo
mas que é um fenômeno onde
se guardam incontáveis afetos
(o orgasmo noturno
o mau humor matinal).

É que este corpo aqui
também é uma casa onde
mora uma família inteira de silêncios
é onde em atos se concretizam as vontades
(ou onde as escondo...)

Este corpo aqui é um lugar de
trespassamento constante
um lugar ora lúcido ora obscuro
frágil
muitas vezes triste
mas é por onde o mistério da vida
atravessa infinitamente.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Escrita do Deus (ou pequeno satori)


Enquanto encaro a folha em
branco (e minha cabeça às
voltas com o aluguel que
não tenho como pagar) escuto
os vizinhos trepando no andar
de baixo.
Concentro-me como num koan e
penso que se existe algum mistério
no universo a ser solucionado ele
deve estar inscrito no padrão dos
gemidos de gozo da minha vizinha.

E quando saio pra rua a
vitrine da loja de souvenires é
uma espécie de delírio:
na prateleira de baixo
num copo de vidro
Batman me cerra os dentes (mas
qual Pessoa desvio meus olhos para
fora da possibilidade do soco).
Na prateleira de cima
Shiva Nataraja na sua dança cármica
pisoteia as cabeças de demônios hindus
todos eles com as caras de ex-namoradas.

E assim ele se iluminou.

Dialética Suburbana


“Por que será que toda
loira gostosa (e que sabe que
é gostosa) usa piercing
no nariz?”
Com essa hipótese se iniciou a
nossa filosofia de bar.
“E não se esqueça das tatuagens
em lugares estratégicos!”
Ele complementou.

Enquanto discutíamos a
padronização estética das loiras gostosas
um amontoado de crianças pretas
(todas lindas como eu era quando pequeno)
passou correndo para fazer a
maior algazarra no portão da esquina:
era dia de São Cosme e São Damião.

Tristeza em Concreto


Estes casarões do Campinho
antigos
velhos
sem portas ou janelas
(lá dentro um quarto azul
um guarda-roupa
um ventilador de teto)
são (des)construções no corpo
pesado da noite suburbana.

E depois dos corredores de
escuridão absoluta
através de escadarias destruídas
penso na vida que se perpetua
nas pessoas pobres como baratas em
escombros
(como nas ruas bombardeadas de Cabul).
Penso nas crianças ali dentro
que querem estar felizes
mesmo no âmago desse casario à
beira da avenida
de dentro das entranhas dessas
tristezas de tijolo e cimento.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O Retorno de Saturno



Então é setembro:
o frescor das flores
na chegada da Primavera e
o dia do meu nascimento.

Alguns sentiriam nisso algum
senso de beleza
mas eu digo que nasci num
dia de Sol negro.
Desde criança as pessoas enxergam
em mim um semblante preocupado
os olhos (atrás dos óculos) injetados
de melancolia.

(O mp3 me faz concordar piamente
com Belchior contrariando Caetano:
“Nada é divino
Nada é maravilhoso!”)

Sob o sol desta manhã (uma
manhã perdida do Méier) eu
carrego um grande desencanto
cada fibra se agride de saudades
cada célula se atrita de desejo
(saudade é um desejo no tempo inverso).

E enquanto penso na vida
(enquanto caminho entre coisas que
se movem e as que não)
vou me sentindo um Nerval desatinado
pelas esquinas do subúrbio.

29


Amanheço no dia do meu
aniversário
(como amanheço em qualquer
dia) e as paredes brancas do
quarto são uma vertigem.

Ultimamente ando passando os
dias assim:
pela manhã
arquitetando vilanias no silêncio da cama
à tarde
achando lindas as famílias chinesas
das pastelarias
e quando anoitece
enumerando o nome dos amores que
tive em cada bairro no caminho de
volta do trabalho.

Agora tenho quase trinta e
toda essa pulsão de morte quase
só me deixa da infância as
saudades das salas de pediatria.

A filosofia e a poesia são exercícios vãos:
não respondem nada.
A bebida e o sexo as vezes
quase chegam a responder...
mas a vida é não haver resposta.

Os pêlos dos meus braços todos
cheirando esse cheiro acre de passado
esse cheiro de coisas velhas
amareladas
o mesmo cheiro dos livros encaixotados
me fazendo crer que também sou
feito de páginas.

E hoje aqui
na sala no quarto no banheiro
comemoro meus vinte e nove mil
anos de idade.
Sou a relíquia de uma civilização
que não quis existir
sou uma múmia chinchorra
uma tábua cuneiforme
um soldado de terracota
uma Vênus desmembrada
eu sou um menir solitário na
planície do mundo...

Um sol negro desponta no horizonte
desse vinte e dois de setembro e
vejo se criar um dia tenebroso.
Farejo o hálito de Saturno retornando com
a boca escancarada
(o Tempo devorando o que é corpo)
e eu sinto nessa efêmera manhã
do século XXI
o que sentiu Goya
a trezentos anos atrás
(em um vilarejo na Espanha)
enquanto encarava o seu Cronos.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Zéfiro Seduzido


O seu cabelo ao vento
desse negro absoluto
solto no ar
é uma serpente de petróleo que dança.

Não.
O seu cabelo ao vento
desse negro absoluto
cobrindo seu rosto
é como um véu de assassina árabe.

Esse vento que teima
em pôr uns únicos fios presos na
separação dos lábios dela
(quando ela os prende atrás da orelha
isso já é toda a poesia).

Enquanto ela caminha
o vento força seu vestido contra
os seus peitos
vai frisando o tecido suavemente
para além da sua cintura:
ondas que escalam seus quadris e
dissolvem-se contra duas montanhas eriçadas.

E nesse dia de vento
como é normal acontecer
tudo vai perdendo a cor...
mas nos lugares por onde ela caminha
o vento ergue seu vestido azul clarinho
e vai derramando a cor de creme das
suas coxas pela calçada inteira.

Porém
esse vento quando a envolve
não é um caótico sopro de ar:
tudo o que nela se agita
se agita em harmonia.
No seu cabelo
no seu vestido
o vento é o próprio movimento das coisas
é a vida mesmo que as coisas adquirem.

Vê-la caminhar assim dentro do
tormento do vento é sublime:
é como ver caminhar a Vênus do Boticelli
dentro de um quadro de Van Gogh.

Vão Fechar O Hotel Paris


Deu no jornal.

O que será da Avenida Passos
do Teatro João Caetano
o que será de Vossa Excelência
D. Pedro I
eternamente petrificado ali no
meio da Tiradentes sem a
companhia das meninas noturnas?

Sim
vão fechar o Hotel Paris.
E com ele seus 36 cubículos que
a 65 anos secretam um milhão de afetos.

O Hotel Paris deveria ser tombado.

E agora
quem vier do subúrbio para uma
noite na Lapa
perderá um fragmento de romantismo
no caminho.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Da Morte e Sua Aproximação Silenciosa

Um baque surdo.
A freada.
Gira
gira no asfalto
gira no asfalto qual um tapete
gira no asfalto qual um tapete e pára.
Pára para nunca mais movimento
a não ser as únicas vibrações
dos nervos
a não ser os últimos tremores
nas orelhas.

A noite é fria
o asfalto é frio
o frio dentro de ti começando a
te tomar o corpo palmo a palmo.
A visão obscurecendo aos poucos e
tu não entendendo nada.
Tu não entende nada que não
seja dessa dor
(ou quem sabe nem mais isso).
Tua cabeça tombada no chão só
vê a rua noturna se estendendo
ao infinito
(e isso parece a morte).
O que tu tece nesse
último imaginar?

E tu não entende nada.
Tu não entende porque tudo teu
se volta para o esforço de movimentar
um corpo outrora ágil
mas que agora não eriça nem
um único pêlo
onde nada se ergue e nem
se erguerá mais...

Some a rua
silenciam os sons
esvaem-se os cheiros...
apaga-se o seu mundo inteiro
e eu findo também já que estou nele.

Como posso ainda estar aqui então
a semana inteira com você
no pensamento
vira-lata atropelado?

Uma Cor


Na esquina
com o guarda-chuva negro aberto
enquanto espera o trânsito parar
ela passa cuidadosamente o batom.

A chuva é fina.

Sua boca agora vermelha
vai ferindo a pele cinza
da paisagem inteira.

Relicário


Afetos públicos alheios me comovem
deixam esse mar imenso
esse mar inteiro
revolvendo no breve espaço da garganta.

“Aves Abatidas na Hora”

Anunciava o letreiro no aviário.

Alguns coelhos inertes
(que antes eram brancos mas
que agora estão todos rajados pela
ferrugem das grades)
são memento mori encarnados.
Só o galo
-galo idiota-
que mesmo carregando na retina o
olhar do condenado
ainda insiste em marchar imponente no
seu passo de nobre cavaleiro medieval.

Um aviário
um açougue
também é uma casa da morte
também é um campo de concentração.

Transubstanciação


Acho que a casa de onde vim
vai transbordar de melancolia.
Esvaziada dos livros
dos filmes
das roupas que
trouxe pra cá
penso no vácuo da estante
do armário
das gavetas.

Penso no quarto onde um dia existi.
Sinto-me traidor das paredes que
nunca confessaram a ninguém
os meus crimes e que
antes abrigavam minha solidão
mas que agora saberão ter a sua própria.

Imagino meus pais no epicentro
desse deixar para trás
no saber do último filho saindo
de casa:
deve ser como supor a última
parte da estrada.

Mas fica alguma coisa ainda do tempo
de ser sozinho
em um sobrado rosa que agora
guarda um silêncio a mais
uma ausência a mais
mas que ainda resistirá de pé através
das manhãs de sol nos paralelepípedos
das tardes de chuva na umidade dos muros:
efêmeras marcas dos dias que logo
se perdem nos abismos da memória.

Sexto Andar


I
Na janela da nova casa
só um fragmento de rua:
sob as árvores de agosto
dois homens consertando um carro
os ônibus que param no sinal e logo seguem.
Dói-me no corpo a impossibilidade
do rosto de cada menina que caminha
me entristece um pouco estar aqui dentro
vivendo a impossibilidade de ser
todos os instantes daquela rua.

II
Caixas de livros pelo chão e
a volta
o quarto ainda vazio de móveis.
Antes morava num sobrado
mas agora penso que talvez
minha melancolia se aguce
minha poesia rareie:
é que as melancolias de apartamento
são de um corpo bem mais sólido e extenso.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Noumeno Yin


O que ninguém pode supor
é que esse negrinho tatuado e
raquítico
não passa de pura aparência.
Nas horas vazias ele é uma mulher
que abre e fecha as persianas de
um quarto amarelado.

Ela que vive nua com a solidão dos livros
e que quase sempre se flagra
-cristalizada de melancolia-
na composição de um quadro de Hopper.

Estação 422


Quando Samantha
abria as pernas e me forçava
a encarar o desabrochar da sua rosa
eu me encolhia todo como sob
o jugo do olhar lacrimoso de
uma deusa raivosa.

E quando no ouvido ela
me sussurrava:
“vem meu preto
fode gostoso a sua branca”
eu morria de medo que ela
me despisse não das roupas mas
do meu íntimo inteiro...
um pavor agudo que ela soubesse
antes de mim mesmo
quem era eu de verdade.

É que ali
naquele cubículo sem janela e ventilador
eu era um garoto indefeso diante
de uma gigantesca esfinge ao avesso:
a vagina da Samantha
com seu hálito agridoce de gozo e urina
me fazia sempre uma ameaça velada:
“devora-me ou te decifro!”

A Solidão nos Lençóis do Varal


Os lençóis no varal são
o único indício de movimento
nessa tarde ociosa
onde tudo pára
onde tudo se sustém
menos talvez a força dessa música
que mesmo agora ainda
quer alcançar aquela musa que
anda diáfana mas que nunca se extingue.

Folhas verdes e vermelhas
(essa última cor a sua última cor)
casas empilhadas nos morros
(que vida acontece ali agora?)
é tanto azul no céu de julho
que poderia jurar que tudo
quase fica azul
(menos no colorido das fotografias do mural
menos no cinza das minhas vontades).

E de frente ao espelho me vejo e
o que vejo eu aprendi nos livros de escola:
não passa de cabeça tronco e membros...
mas é realmente isso que me contém?
é onde eu me caibo?
é o que reafirma perene o “eu existo”?

Diriam outros que isso aqui é um corpo
(talvez uns sentimentos vagabundos
talvez uma alma à venda)
mas eu digo que não:
eu afirmaria que isso aqui é
um maquinário de afetos
cujas engrenagens silenciosas operam
o milagre da poesia
e fazem meu coração cessar o tum-tum
e dentro dessa caixa torácica
se render aquela brisa sossegada que
embala a solidão nos lençóis do varal.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Google Maps



I
Olho no monitor um
mapa com as ruas do Rio.
O computador me dá
-mesmo que virtualmente-
o olhar de um deus
de um falcão
de uma nuvem.
E em uma fração de segundo
(com o movimento de um dedo)
posso ir de Bangu a Botafogo.
Penso em tanta estrada na Zona Oeste
tanto cinza pelo subúrbio
tantas meninas lindas que nunca verei
(ao menos o simples sorriso de
cada uma delas
ao menos as reticências de uma
possibilidade)...
II
Quando eu morrer
queria que fechassem essas ruas
(luto na Lapa?)
que entupissem as artérias da cidade
com um cortejo carnavalesco
de boêmios
putas
e poetas:
nós que passamos a vida inteira
comungando com a voz secreta da noite.

III
É só um mapa visto através
de uma página da Internet
então
porque olhar desse jeito a
cidade onde eu sou
me diz tamanha solidão?

Na Copa do Mundo

Oito da manhã
e um atropelado na Intendente
atravanca o trânsito.

Mas hoje é dia de jogo da seleção brasileira.

A paisagem toda em verde e amarelo
nos muros
nas camisas
nas varandas
nas janelas dos carros...
Mas ali
à volta do corpo caído as
cores da bandeira não cingem.
O morto já não tem mais pátria
já não é mais torcedor
virou objeto que daqui a pouco vai
gerar uma terrível comoção na família
(não mais a comoção pela vitória da seleção).

Mas o cadáver coberto pelo sol frio de junho
(logo um jornal um plástico preto)
ainda luta:
digladia o amarelo e verde do dia com
seu vermelho e cinza de sangue e asfalto:
mancha a festa alheia com as
suas cores de morte urbana.

Relíquia




Um fragmento não supõe o todo.

Seu olho castanho-escuro
apenas seu olho castanho-escuro
visto agora através de uma fresta
pode ser um pedaço de noite em
plena duas horas da tarde
pode ser um abismo absoluto.

Mas eu sei que mesmo assim
pra quem não te viu passar
-e não te sentiu como eu te senti-
aquele mero fragmento
não dirá nunca a
poesia inteira do seu rosto.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A Vida do Poema: Uma Biografia Não-Autorizada

Ninguém pode supor quando é
parido o poema.
O parto de uma criança
se mostra nos gritos da mãe
mas a dor do poema se dá no silêncio
(os cães levantam as orelhas
os passarinhos levantam vôo:
os animais ouvem o estampido que o
poema faz ao nascer)
E o que poucos sabem é que ele
assim como as crianças
pode ser gerado em qualquer lugar:
nas ruas de uma tarde esquecida na cidade
no hermético de um quarto do subúrbio
no cheiro de cigarro e buceta de
um salão de puteiro no Centro
numa noite praieira de verão na Califórnia
numa prisão de neve em uma planície russa.

E o poema
sem ninguém perceber
crescerá.

E os versos
que nasceram pra ser livres
irão correr o mundo afora
sem assinatura
sem pai
sem dono
sem freios
vão assim como os homens
fazer parte da velocidade do cotidiano
da vertigem da televisão
do sufoco das horas de escritório.

E
vez em quando
terá encontros com aquelas mulheres
por quem dirá
que os olhos são estrelas
que o hálito é jasmim
que os cabelos são como as ondas do mar
(o poema é malandro
sabe que as mulheres se derretem
nesses clichês)
mas uma hora o infeliz do poema vai
bater de frente com um marido ciumento...
e é aí que ele vai dançar!
O cara encherá o poema de balas
(caberá balas no corpo do poema?)

E numa esquina qualquer
o poema se esvairá lentamente
agonizando quieto como veio ao mundo.
Resignado ele dá seu ultimo suspiro
(alguns são todos feitos de suspiros)
e os transeuntes na calçada passarão
por cima do seu corpo:
o poema não merece atenção de quem
vai ou volta apressado dos afazeres diários.

Só quando o poema começar a feder
quando ele começar a incomodar
a polícia vai chegar e
cobrir de jornais o corpo
vai revestir a poesia de reportagens.

E sem pai nem mãe
sem parentes próximos ou
primos de terceiro grau
o corpo não poderá ser identificado.
O cadáver vai ser doado pra alguma
faculdade de medicina:
vão esquartejar o poema
vão dissecá-lo inteiro.
Quem sabe no corpo do poema não
descubram uma nova vacina?
A cura pro câncer ou apenas
pro anestesiamento do dia-a-dia.
(pelo menos nesse final poderão
dizer que ele serve pra alguma coisa)

A morte do poema
não vai merecer nem uma breve
nota no Jornal Nacional.

Acedia


A sombra do avião alisa o
verde do morro.
O céu é azul
mesmo dentro do frio de junho.
Nessa manhã de quarta-feira
Meus olhos numa janela de frente
para um ferro-velho
para um terreno baldio
para um morro imóvel
para uma rua vazia onde passa
um ônibus vazio
(pelo menos o ônibus passa).

A sombra do avião alisa o
verde do morro
e
o céu é azul
mesmo aqui dentro do
cinza do quarto
(ainda resquícios de escuridão da
noite que há pouco acabou).

E quem no bairro inteiro terá
também sentido essa hora?

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Cinco Minúsculas Elucubrações Sobre a Vida e a Morte


I
Terça-feira.
Chuva e frio.
A janela do ônibus impõe
o meu reflexo pra não
me deixar esquecer que existo.
E assim eu me vejo:
magro
esfaimado
diáfano:
um fantasma no qual a
paisagem passa através.
Eu quis ser o reflexo
(e não o serei verdadeiramente?)
pois aqui nesse corpo de
carne-e-osso
sangue e vísceras
nada passa.
Absolutamente tudo se detém.
E quem além do meu coração
saberá o quanto isso pesa?

II
Hoje um colega no trabalho
me disse espontaneamente:
Você tem cara de quem gosta de chuva!
Me assustei...
Ele quase pôde adivinhar que
eu sou o próprio deus da chuva.

III
A luz da estação de trem de Anchieta
cinza
agonizante
sobre o concreto da plataforma vazia
é a iluminação de um necrotério.

No vidro escuro do carro ao lado
se foto-grafa em verde fosforescente
a placa do meu ônibus:
723- Cascadura/Mariópolis.

Ao menos isso me traz
algum senso de destino.

IV
Lendo os filetes finos
de água que escorrem nas
janelas dos carros
vou sentindo que
em noites como essa
-quando não há ninguém sabendo-
a chuva adormece as ruas e
em intervalos regulares
oblitera o meu corpo inteiro.

V
Já dentro de casa
-copo de café-com-leite na mão-
olho em volta:
as fotografias
o colchão
o computador
os livros
as gavetas.

Olho em volta
olho dentro de mim
e
não acho nada.

Festa Junina

Na minha casa tudo anda triste.
Tudo o que a forma vai se desfazer.

Como pode alguém antes dos 30
já sentir falta da juventude?
Nas fotografias antigas
(mas nem tão antigas assim)
o meu rosto era bem mais bonito
era tudo viagem e praia
e amigos sorrindo sob o sol e
os vestígios ao longo do dia das
amantes que iam embora pela manhã
(cedo aprendi que as melhores amantes
são as que vão embora pela manhã).

Mas tudo talvez porque é junho:
essa paleta de cores frias
essas paisagens inexatas
e
essa saudade do dentro de fevereiro.

É junho:
quando tudo é solidão de
areia de deserto
quando todas as coisas do mundo
querem estar sós.

É junho sim...
e somente nesses dias foscos
que
navegando no contrário dessas horas
eu posso me debruçar sobre
um pedaço de papel e
escrevendo poemas que não
valem um centavo
realizar a maior das resistências.

Gran Torino


Para Bukowski

Ela me liga de madrugada cheia de cachaça na cabeça pra dizer que está na Lapa e que tudo ali a faz lembrar de mim era pra eu ficar puto mas acabo achando engraçado ela chapada tentando ser poética pra me impressionar (algo como “te vejo em cada esquina te vejo brotando dos arcos”) você não nasceu pra poesia garota! desligo o telefone pensando que ao menos ela é linda e que por isso não precisa ser poeta e acho que até vou dormir feliz por agora saber que alguém é capaz de sentir saudades minhas enchendo a cara pelas sarjetas da Joaquim Silva.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Noturno do Centro


Nem tenho mais andando por aqui.
Já quase nem lembrava do
trânsito absurdo do Centro
a noite caindo na avenida inteira de
carros acesos
trazendo a sensação de velhas rotinas.

Por outro lado
também já me perdia dessa nostalgia
que tenho nem sei de quê
essa vontade de passado que
me agonia e me acalenta junto.

Envolto na densidade da atmosfera
das ruas do Castelo
ver passar a beleza padronizada
das secretárias
das advogadas
das recepcionistas e
seus celulares e seus sorrisos e
seus rostos maquiados
é uma alegria que só se interrompe na surpresa
de perceber que quase esqueci que
num momento de sorte
é possível encontrar uma moça bonita
também no Hotel Paris
(essa sem tailleur
só de shortinho).

Sentado em um bar da Ouvidor
uma ex-amante esperando alguém
como me esperava antigamente:
cigarro na mão
copo de cerveja pela metade na mesa...
Passo de esguelha:
não convém mais ao homem comprometido
a poesia do reencontro.

Na condução de volta
se senta ao meu lado um travesti.
Penso que seria uma mulher bonita se
não tivesse pêlos nos braços e
provavelmente
um pau maior que o meu.
Ele(a) tira um espelho da bolsa e começa
a pintar os lábios com batom.
Batom caquí igual ao daquela música
do Nando Reis que até hoje ainda insiste
em querer me fazer chorar.

Fingindo que não percebo ele(a)
me olhando através do vidro
eu vou vigiando os casais se abraçando
nos ônibus emparelhados
se amando nos pontos sob
a luz artificial dos postes:
luz cinza que dá-lhes o aspecto de estátuas de chumbo.
Estátuas eles são:
efígies minhas e dos beijos que deixei pra trás
daquelas horas passadas que ainda resistem
e se atualizam em todo momento presente.

E isso tudo me deflagra
em pleno banco de ônibus
às 9 horas de uma noite do Centro
(esta noite que ninguém percebe)
a ardência no rosto que anuncia a
contração nas bochechas donde nasce
o meio-sorriso triste de alguma saudade abortada.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Velha Mendiga


Eis ali a velha mendiga:
a pele da cor do jornal amarelado
da textura do papel amassado
onde se destacam os olhos verdes:
uma figura esquálida e ensimesmada
que dentre seus trapos
é toda seus olhos verdes.

Na sua imobilidade
(inércia de quem é triste
de quem tem fome)
ela é pièce de résistance
dentro do movimento que faz
existir a rua 7 de Setembro.

Como chegou até ali?
Teve infância aquela senhora e
já brincou no quintal feliz com
seus sapatinhos novos?
Já ganhou afago de mãe?
Saiu na porrada com a irmã mais velha?
Na juventude ela teve um
primeiro namorado?
Ou nos bailes e festas da escola
levou a ruína alguns corações?
(não duvido com aqueles olhos
com aquela cabeleira clara)

Pra quem vai e pra quem vem
na correria do trabalho
nos afazeres das compras no Centro
aquela senhora não existe
é um espectro arcaico da cidade.
Mas ali sentada e soturna
emergindo dos seus panos sujos
ela se ergue absoluta dentro da
vertigem do dia comercial.

Só o olhar do poeta pode saber:
Aquela é uma rainha caída.

sábado, 8 de maio de 2010

Pequeno Tratado Sobre a Fenomenologia do Amor e da Solidão



I
O vermelho aceso dos faróis e dos sinais
nem de longe iluminam o
casal de namorados no banco da praça.
No centro do vaivém do trânsito
(na noite de Cascadura)
o amor surgindo de lugares inesperados
lança seus ecos ao longo da
avenida inteira.

O amor sabe se perpetuar.

II
As buzinas das lotações os
motores dos ônibus o
funk tocando alto na velocidade do
carro que passa
a noite se esvaindo num estrondo:
alguém em mim indo embora e
levando consigo a melhor parte.

III
Na madrugada o silêncio da
hora é ensurdecedor.
O ar é pesado
tem peso e densidade.
A madrugada tem cheiro e temperatura.
A madrugada é um corpo que me exila.

IV
Já de manhã
tudo existindo na fosca claridade:
a solidão simbolizada
cristalizada
nas lágrimas de um filme do Almodóvar.

A Canção do Divino Mestre (ou do princípio de individuação)


A noite passa nos filmes da TV a cabo
enquanto eu aqui nesse sofá
nem sei dos que se esvaem em
dor nos leitos dos hospitais
nem sei dos que trepam madrugada adentro.

Como pode um indivíduo existir
alheio a tantos bilhões de outros?
Como pode essa consciência estar aqui
entorpecida em meio a tanto
prazer e dor acontecendo no mundo
ao mesmo tempo?

sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Sétimo Selo


Tristeza cansa.
Alegria também.

Sexo cansa.
Não comer ninguém cansa.

As pessoas cansam.
A solidão cansa.

O trabalho cansa
O ócio cansa.

Enfim
a vida inteira cansa.
Porém
só a morte
e a arte
descansam.

Aristóteles no Caos


A Via-Láctea é uma.
A Via-Láctea é uma
galáxia entre infinitas galáxias.
A Terra é um planeta
entre inumeráveis planetas e
na sua superfície carrega cinco
massas imensas de chão acima do mar
que chamam de continentes.
Os continentes têm neles linhas tatuadas
(apesar de que eu nunca vi nenhuma)
chamadas fronteiras.
Dentro dessas fronteiras existem países.
Um país é formado por homens e livros.
Os livros eu não sei quantos são mas
os homens são bilhões.
Dentre esses bilhões o
Luis Claudio Moutinho Rocha
este Kavita Kavita
a exemplo da Via-Láctea
é um
(mesmo crendo que a unidade é ilusória).

Mas sabe que também haveria de não ter sido nenhum
se o mínimo de um fato na vida de sua tataravó
poderia ter feito seu pai não conhecer sua mãe
se o átimo de um gesto feito
por um dinossauro a milhões de anos atrás
poderia fazer sua mãe ter morrido antes dele nascer.

Porém
contra as incontáveis adversidades e aleatoriedades
eis aqui este cara:
um átomo de um grão dentro do universo
feliz por ter nascido no Rio de Janeiro
mesma cidade em que ela mora:
no fim de tudo
tudo era só por ela.

Poema de Amor


Certas músicas
como essa agora aqui no MP3
me trazem uma insondável nostalgia
das luzes e habitantes na noite da Lapa.

Lembram de ir me
desfazendo
rolando meus átomos pra
dentro das frestas do casario
preenchendo os vãos entre as
pedras portuguesas
e ligando as ranhuras dos Arcos.

Fiquei impregnado na carne
da Joaquim Silva
da Rua da Lapa
da Mem de Sá...

Onipresente nas coisas
depois que eu morrer serão minhas
saudades e minhas vontades
-essas substâncias que residem fora do tempo-
que fluirão ainda entre os
cheiros de bebida mijo e maconha
da minha insone e amada babilônia.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Da Adversidade Viemos


Você às vezes me pede pra
escrever poeminhas bonitos...
Mas veja bem menina
como posso versejar coisas bonitas
se entre um CD do Caetano e outro eu
tenho o som das rajadas no Morro do Urubu?
Não dá pra ser esse poeta blasé moderninho
escrever essa poesia Bossa-Nova
se não há posto seis na janela
se do outro lado da rua cruza a toda
o parador do ramal Japeri.

Mas você bem sabe que
eu não quero mesmo o poema que vem
do azul de Ipanema e suas mulheres
esculturadas e queimadas de sol
(às vezes até quero).
Mas não
não quero Vinícius num bar de Copacabana...
quero ser Bukowski na Lapa cheio de
cachaça barata na cara.
Quero ler o futuro nas manchas e
rachaduras do viaduto do Jacaré
e conseguir arrancar poesia também do
riso falso das putas barrigudas de Madureira.

Não sei ver beleza em gestos banais
nunca aprendi a poetizar cotidianos.
O que sei e quero é ferir o bom senso
anestesiar o vazio de viver os dias.

Mas eu soube menina
que as flores de lótus brotam na lama
e talvez eu seja um bom poeta.
Mesmo aqui
contra todas as adversidades
geladeira vazia e paisagem suburbana
não tendo nada a ver com essa juventude que
faz suas lindas poesias nos seus quartos
de apartamento em Botafogo.

Fantasma Industrial


A noite se esforça para derrubar o temporal.
Lentamente o ônibus passa em
frente a uma fábrica fechada onde as
janelas acesas me angustiam.
Através delas eu vejo prateleiras
abarrotadas de caixas
através delas eu vejo o teto de cinza cru
dentro da moribunda luz branca.

Mas na janela do meio há um
resíduo de vida:
existe ali um mulher fumando.

Dentre tanta concretude
eu chego a duvidar da sua realidade:
talvez ela seja só o fantasma de uma lembrança
um espectro assombrando o velho prédio.
Mas definitivamente ela está lá àquela hora
na janela de uma fábrica vazia
sentindo entranhar nas narinas e nas
roupas o cheiro da nicotina.

Ela nunca suporá que olhá-la ali
-nós que nunca nos conheceremos-
na janela acesa de uma fábrica deserta
fumando numa noite de quase temporal
me deixou querendo que a chuva caia.
Deixou pra mim
sem motivo algum
uma volta pra casa bem mais triste.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Tempo de Mudança


Ela gira nos cômodos vazios
e imagina o lugar de cada móvel
sem supor que ela ali
parada na sala no quarto vazio já é
tudo o que o apartamento precisa.

Depois
ela ri e chora porque nunca
soube impedir de transbordar a alegria
que carrega no peito.
E emburra e faz pirraça feito
criança por saber que a grana talvez
seja curta demais.

É a hora que chega
a primavera que ela quis
momento de jardins cultivados a dois.

Ela sabe e sonha
-e me embala nesse sonho-
e assim me faz saber também
que pra esse amor tão grande
qualquer simples apartamento pequeno
no Méier na Lapa
pode ser o epicentro da reunião
entre o céu e a terra.

Tlatoc


No sol eu quase posso esquecer.
Mas sob a chuva
cada gota te grita na memória e
essa boca que grita se escancara também
para devorar as horas da madrugada.

Eu invoco o relâmpago e
me disperso em átomos
viajando no tempo do clarão
até o lugar onde essa hora
a chuva não te molha
onde você tece instantes em
que nem lembra mais que eu
já fui um deus da chuva.

Daqui a pouco vai ser manhã límpida
e eu poderei ser feliz novamente
(mesmo sem você).
Porque é no azul sereno de uma
manhã despida da noite do temporal
que eu e o mundo nos sabemos sem morte.

Kwan Yin


O primeiro sol reluz no mato criando
esse vasto campo de luz
criando flechas acesas apontadas para o céu.
O sol dessa manhã
o sol que cobre esse matagal em Campo Grande
é o mesmo sol de mil anos atrás
é o mesmo sol que esquentava os campos de arroz
dos antepassados da chinesinha da pastelaria.

E saio um pouco da fila do ônibus
dou um passo pra trás para admirá-la e ver
que ela é tão linda quanto imagino ser uma
manhã branca em Pequim.

A Existência do Relâmpago


I
O que vê um relâmpago antes
de fender o céu?
Coisas e pessoas diminutas:
alvos em potencial.
Mas seu existir é uma fração
um átimo...

Sem tempo de mirar ele se
precipita quase sempre em vão
quase nunca cai no mesmo lugar
(mas sim senhores
ele cai).

II
Eu li no Livro dos Recordes que um
homem sobreviveu ao longo da vida
a queda de cinco raios sobre ele.
Ele cometeu suicídio por
um amor não correspondido.

Fico pensando que eu não
sobreviveria a um raio sequer...
mas já sobrevivi a uns cinco suicídios por amor.
Mereço o Livro dos Recordes?

III
Estou precisando sorrir.
Por isso
aqui na casa sem luz
eu fico de olhos fechados sobre o colchão
só para que cada vez que vare um relâmpago
eu tenha um segundo de alegria por
achar que a luz voltou.

IV
Nessa noite de Domingo
os raios e o som da chuva me
trazem em um estalo
nostalgias de noites que não vivi...
(como estará a Camerino
a Gomes Freire e a Lavradio a
essa hora?)

V
Logo depois do clarão do relâmpago
o telefone toca.

Conversamos.

Ao desligarmos o telefone a
luz volta no mesmo instante.
O telefonema dela veio com a luz e
me trouxe a luz de volta:
a voz da Fernanda me salvando
de um intervalo escuro.

sábado, 6 de março de 2010

Como Devia Estar


Cheguei ao limite da vida comum.
Não quero mais ter a ver com
nada dessa rotina:
trabalhar trabalhar trabalhar
estudar estudar estudar
se aposentar para jogar damas na
praça esperando o AVC fulminante.

Como é que pode alguém
-quase na metade da vida-
ganhar esse salário medíocre e
ainda encontrar tempo pra escrever
essa poesia que não serve de nada?

Deveria mesmo era ter sido
um cientista ganhador do Nobel
um barão das drogas colombiano
um artilheiro da Copa do Mundo.

Mas que nada!
Queria mesmo era a vida de cinema:
cansado e ferido
-depois de ter sozinho eliminado
da face da terra dúzias de vilões-
ter as pessoas olhando aquelas
Tv’s enormes das Casas Bahia
exibindo todas ao mesmo tempo
eu e a Zhang Ziyi num último beijo
antes de subirem os letreiros.

Os Dias Sem


Ah
nem sou eu que penso nela!
São os filmes que sentem saudades
dos seus olhos
os livros que sentem falta das
suas mãos
as gavetas sem o cheiro
das suas roupas.

E este espelho aqui
que ainda espera ela pintar os olhos?
Os meus defeitos ansiando o
freio das suas críticas
o silêncio do quarto querendo se quebrar
novamente com o contínuo da sua fala.

Caralho!
Percebi...
Sou eu que ainda penso nela...

Subversão


Eu
este paradoxo encarnado:
às vezes Dalai Lama
às vezes Don Juan
ora lucidez
ora poesia
melancolia e carnaval.

Só que agora
depois que ela passou por aqui
já não sei mais voltar a ter
essas dicotomias.
Ela assoprou o castelo de cartas
bagunçou o coreto
embaralhou o quebra-cabeças...

Agora tudo é agonia.
Ela me fez desaprender a ser
o que eu era antes.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Consistência da Solidão



Durante a chuva
os balanços do parquinho no Jacaré
pendem imóveis
vazios.
Nesta manhã de chumbo
a caminho da asfixia do trabalho
meus olhos tristes são
as crianças em dia de sol
que ali não estão.

Gamboa



No amontoado de casas da Gamboa
tudo é ruína:
as ruas cheias e imundas
as gordas putas de 20 reais nas
portas dos hotéis de 20 reais
vira-latas magros e bares de sarjeta...
Tudo é cinza e concreto desgastado
nas paredes velhas da Gamboa
só uma pontinha de mar no
fim de uma rua destoa de tudo.
Só uma pontinha de mar...

Imposição das Mãos



Tudo tão pequenininho:
a enseada de Botafogo
(de noite é como meu quarto:
só o vácuo de um breu)
a velocidade dos faróis rasgando o Aterro
as luzes do Morro da Urca parecendo
as únicas estrelas que teimaram acender.
Tudo cabendo aqui na palma da mão.
E essa mão no vidro do ônibus
quase captura o horizonte inteiro
quase torna a noite do mundo palpável:
a mão de dedos estendidos para
instilar o amor e saudade no
ficar para trás da paisagem diminuta.