quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Da Morte e Sua Aproximação Silenciosa

Um baque surdo.
A freada.
Gira
gira no asfalto
gira no asfalto qual um tapete
gira no asfalto qual um tapete e pára.
Pára para nunca mais movimento
a não ser as únicas vibrações
dos nervos
a não ser os últimos tremores
nas orelhas.

A noite é fria
o asfalto é frio
o frio dentro de ti começando a
te tomar o corpo palmo a palmo.
A visão obscurecendo aos poucos e
tu não entendendo nada.
Tu não entende nada que não
seja dessa dor
(ou quem sabe nem mais isso).
Tua cabeça tombada no chão só
vê a rua noturna se estendendo
ao infinito
(e isso parece a morte).
O que tu tece nesse
último imaginar?

E tu não entende nada.
Tu não entende porque tudo teu
se volta para o esforço de movimentar
um corpo outrora ágil
mas que agora não eriça nem
um único pêlo
onde nada se ergue e nem
se erguerá mais...

Some a rua
silenciam os sons
esvaem-se os cheiros...
apaga-se o seu mundo inteiro
e eu findo também já que estou nele.

Como posso ainda estar aqui então
a semana inteira com você
no pensamento
vira-lata atropelado?

Uma Cor


Na esquina
com o guarda-chuva negro aberto
enquanto espera o trânsito parar
ela passa cuidadosamente o batom.

A chuva é fina.

Sua boca agora vermelha
vai ferindo a pele cinza
da paisagem inteira.

Relicário


Afetos públicos alheios me comovem
deixam esse mar imenso
esse mar inteiro
revolvendo no breve espaço da garganta.

“Aves Abatidas na Hora”

Anunciava o letreiro no aviário.

Alguns coelhos inertes
(que antes eram brancos mas
que agora estão todos rajados pela
ferrugem das grades)
são memento mori encarnados.
Só o galo
-galo idiota-
que mesmo carregando na retina o
olhar do condenado
ainda insiste em marchar imponente no
seu passo de nobre cavaleiro medieval.

Um aviário
um açougue
também é uma casa da morte
também é um campo de concentração.

Transubstanciação


Acho que a casa de onde vim
vai transbordar de melancolia.
Esvaziada dos livros
dos filmes
das roupas que
trouxe pra cá
penso no vácuo da estante
do armário
das gavetas.

Penso no quarto onde um dia existi.
Sinto-me traidor das paredes que
nunca confessaram a ninguém
os meus crimes e que
antes abrigavam minha solidão
mas que agora saberão ter a sua própria.

Imagino meus pais no epicentro
desse deixar para trás
no saber do último filho saindo
de casa:
deve ser como supor a última
parte da estrada.

Mas fica alguma coisa ainda do tempo
de ser sozinho
em um sobrado rosa que agora
guarda um silêncio a mais
uma ausência a mais
mas que ainda resistirá de pé através
das manhãs de sol nos paralelepípedos
das tardes de chuva na umidade dos muros:
efêmeras marcas dos dias que logo
se perdem nos abismos da memória.

Sexto Andar


I
Na janela da nova casa
só um fragmento de rua:
sob as árvores de agosto
dois homens consertando um carro
os ônibus que param no sinal e logo seguem.
Dói-me no corpo a impossibilidade
do rosto de cada menina que caminha
me entristece um pouco estar aqui dentro
vivendo a impossibilidade de ser
todos os instantes daquela rua.

II
Caixas de livros pelo chão e
a volta
o quarto ainda vazio de móveis.
Antes morava num sobrado
mas agora penso que talvez
minha melancolia se aguce
minha poesia rareie:
é que as melancolias de apartamento
são de um corpo bem mais sólido e extenso.