quinta-feira, 9 de julho de 2015

foram longos os anos até esse beijo chegar,
e ali, naquele grão de receio e desejo,
fomos  bonnie e clyde engatilhando as armas,
rodin e claudel esculpindo um futuro possível .

em essência, sempre fomos (e seríamos) dois vagabundos.

lembra? o plano era esse, e era infalível: nós
dois roubaríamos um daqueles quadros de picasso
e, gargalhando, o entregaríamos aos mendigos.

fugiríamos com a roupa do corpo.

e aí criaríamos nossos filhos em lumiar,
nus pela vida afora, entre as paredes cor de
tijolo, sob os telhados de madeira úmidos de sereno.
eu seria aquele coroa de corpo malhado e
você a menininha dos dreads,  e chocaríamos
os caretas: um cara preto com o dobro da sua idade
escrevendo poesia com cacos de vidro em brasa.
mas seríamos os dois contra o mundo, despedaçados
de amor num labirinto dos espelhos quebrados,
essa espécie de afeto do qual não sentimos os
atravessamentos:  pois é um amor macio, como é
macia a faca na carne de quem terminou de
dormir com o seu assassino.

e o convívio mitigaria tudo.

eu logo me cansaria da sua juventude, pois
nunca aprendi a lidar com intensidades.
para me salvar disto, cultivaria meus cactos arredios
no deserto das tuas tranças: ainda que o sol insistisse em caminhar
sobre os teus cabelos oleosos, mal lavados, despenteados,
eu seria seu contrário, seu yin, eu seria os dias chuvosos na tua vida.

e você, por outro lado, essa tua mania sorridente
de me achar o melhor de todos,
se desfaria nas horas das conchas e das sementes,
nas horas silenciosas das pinturas esotéricas.

chegaria, numa explosão, o tempo da mágoa.

brigaríamos como brigam os casais do cinema, e assim
você me descobriria como realmente sou: sujo, barbudo e triste.
então você iria embora, me deixando sozinho, indefeso,
entre cães, estantes de bambu, e crianças descalças.
mas te buscaria no vento (farejando teu cheiro de bicho
igual ao das mulheres sem vaidade), e te encontraria,  sobre
as pedras abafadas da cachoeira, e seria uma
visão tão absoluta que eu teria medo de desfaze-la.
e o impulso de dizer que te amava seria irresistível,
mesmo me sentindo ridículo e velho, chegaria a você e
te abraçaria com força, mergulhando teus peitos em meu
corpo, e isso seria como dizer que te amava sem ser ridículo.

olha, você seria minha mãe de 20 anos, e eu, o seu filho de 40.

e esse poema que recria dias que não virão é só
uma forma de dizer que ali, em cada segundo daquele
beijo arquitetado e criminoso, fomos (seríamos) o
casal mais feliz e bonito dessa porra de vida inteira.