quarta-feira, 30 de junho de 2010

Google Maps



I
Olho no monitor um
mapa com as ruas do Rio.
O computador me dá
-mesmo que virtualmente-
o olhar de um deus
de um falcão
de uma nuvem.
E em uma fração de segundo
(com o movimento de um dedo)
posso ir de Bangu a Botafogo.
Penso em tanta estrada na Zona Oeste
tanto cinza pelo subúrbio
tantas meninas lindas que nunca verei
(ao menos o simples sorriso de
cada uma delas
ao menos as reticências de uma
possibilidade)...
II
Quando eu morrer
queria que fechassem essas ruas
(luto na Lapa?)
que entupissem as artérias da cidade
com um cortejo carnavalesco
de boêmios
putas
e poetas:
nós que passamos a vida inteira
comungando com a voz secreta da noite.

III
É só um mapa visto através
de uma página da Internet
então
porque olhar desse jeito a
cidade onde eu sou
me diz tamanha solidão?

Na Copa do Mundo

Oito da manhã
e um atropelado na Intendente
atravanca o trânsito.

Mas hoje é dia de jogo da seleção brasileira.

A paisagem toda em verde e amarelo
nos muros
nas camisas
nas varandas
nas janelas dos carros...
Mas ali
à volta do corpo caído as
cores da bandeira não cingem.
O morto já não tem mais pátria
já não é mais torcedor
virou objeto que daqui a pouco vai
gerar uma terrível comoção na família
(não mais a comoção pela vitória da seleção).

Mas o cadáver coberto pelo sol frio de junho
(logo um jornal um plástico preto)
ainda luta:
digladia o amarelo e verde do dia com
seu vermelho e cinza de sangue e asfalto:
mancha a festa alheia com as
suas cores de morte urbana.

Relíquia




Um fragmento não supõe o todo.

Seu olho castanho-escuro
apenas seu olho castanho-escuro
visto agora através de uma fresta
pode ser um pedaço de noite em
plena duas horas da tarde
pode ser um abismo absoluto.

Mas eu sei que mesmo assim
pra quem não te viu passar
-e não te sentiu como eu te senti-
aquele mero fragmento
não dirá nunca a
poesia inteira do seu rosto.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A Vida do Poema: Uma Biografia Não-Autorizada

Ninguém pode supor quando é
parido o poema.
O parto de uma criança
se mostra nos gritos da mãe
mas a dor do poema se dá no silêncio
(os cães levantam as orelhas
os passarinhos levantam vôo:
os animais ouvem o estampido que o
poema faz ao nascer)
E o que poucos sabem é que ele
assim como as crianças
pode ser gerado em qualquer lugar:
nas ruas de uma tarde esquecida na cidade
no hermético de um quarto do subúrbio
no cheiro de cigarro e buceta de
um salão de puteiro no Centro
numa noite praieira de verão na Califórnia
numa prisão de neve em uma planície russa.

E o poema
sem ninguém perceber
crescerá.

E os versos
que nasceram pra ser livres
irão correr o mundo afora
sem assinatura
sem pai
sem dono
sem freios
vão assim como os homens
fazer parte da velocidade do cotidiano
da vertigem da televisão
do sufoco das horas de escritório.

E
vez em quando
terá encontros com aquelas mulheres
por quem dirá
que os olhos são estrelas
que o hálito é jasmim
que os cabelos são como as ondas do mar
(o poema é malandro
sabe que as mulheres se derretem
nesses clichês)
mas uma hora o infeliz do poema vai
bater de frente com um marido ciumento...
e é aí que ele vai dançar!
O cara encherá o poema de balas
(caberá balas no corpo do poema?)

E numa esquina qualquer
o poema se esvairá lentamente
agonizando quieto como veio ao mundo.
Resignado ele dá seu ultimo suspiro
(alguns são todos feitos de suspiros)
e os transeuntes na calçada passarão
por cima do seu corpo:
o poema não merece atenção de quem
vai ou volta apressado dos afazeres diários.

Só quando o poema começar a feder
quando ele começar a incomodar
a polícia vai chegar e
cobrir de jornais o corpo
vai revestir a poesia de reportagens.

E sem pai nem mãe
sem parentes próximos ou
primos de terceiro grau
o corpo não poderá ser identificado.
O cadáver vai ser doado pra alguma
faculdade de medicina:
vão esquartejar o poema
vão dissecá-lo inteiro.
Quem sabe no corpo do poema não
descubram uma nova vacina?
A cura pro câncer ou apenas
pro anestesiamento do dia-a-dia.
(pelo menos nesse final poderão
dizer que ele serve pra alguma coisa)

A morte do poema
não vai merecer nem uma breve
nota no Jornal Nacional.

Acedia


A sombra do avião alisa o
verde do morro.
O céu é azul
mesmo dentro do frio de junho.
Nessa manhã de quarta-feira
Meus olhos numa janela de frente
para um ferro-velho
para um terreno baldio
para um morro imóvel
para uma rua vazia onde passa
um ônibus vazio
(pelo menos o ônibus passa).

A sombra do avião alisa o
verde do morro
e
o céu é azul
mesmo aqui dentro do
cinza do quarto
(ainda resquícios de escuridão da
noite que há pouco acabou).

E quem no bairro inteiro terá
também sentido essa hora?

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Cinco Minúsculas Elucubrações Sobre a Vida e a Morte


I
Terça-feira.
Chuva e frio.
A janela do ônibus impõe
o meu reflexo pra não
me deixar esquecer que existo.
E assim eu me vejo:
magro
esfaimado
diáfano:
um fantasma no qual a
paisagem passa através.
Eu quis ser o reflexo
(e não o serei verdadeiramente?)
pois aqui nesse corpo de
carne-e-osso
sangue e vísceras
nada passa.
Absolutamente tudo se detém.
E quem além do meu coração
saberá o quanto isso pesa?

II
Hoje um colega no trabalho
me disse espontaneamente:
Você tem cara de quem gosta de chuva!
Me assustei...
Ele quase pôde adivinhar que
eu sou o próprio deus da chuva.

III
A luz da estação de trem de Anchieta
cinza
agonizante
sobre o concreto da plataforma vazia
é a iluminação de um necrotério.

No vidro escuro do carro ao lado
se foto-grafa em verde fosforescente
a placa do meu ônibus:
723- Cascadura/Mariópolis.

Ao menos isso me traz
algum senso de destino.

IV
Lendo os filetes finos
de água que escorrem nas
janelas dos carros
vou sentindo que
em noites como essa
-quando não há ninguém sabendo-
a chuva adormece as ruas e
em intervalos regulares
oblitera o meu corpo inteiro.

V
Já dentro de casa
-copo de café-com-leite na mão-
olho em volta:
as fotografias
o colchão
o computador
os livros
as gavetas.

Olho em volta
olho dentro de mim
e
não acho nada.

Festa Junina

Na minha casa tudo anda triste.
Tudo o que a forma vai se desfazer.

Como pode alguém antes dos 30
já sentir falta da juventude?
Nas fotografias antigas
(mas nem tão antigas assim)
o meu rosto era bem mais bonito
era tudo viagem e praia
e amigos sorrindo sob o sol e
os vestígios ao longo do dia das
amantes que iam embora pela manhã
(cedo aprendi que as melhores amantes
são as que vão embora pela manhã).

Mas tudo talvez porque é junho:
essa paleta de cores frias
essas paisagens inexatas
e
essa saudade do dentro de fevereiro.

É junho:
quando tudo é solidão de
areia de deserto
quando todas as coisas do mundo
querem estar sós.

É junho sim...
e somente nesses dias foscos
que
navegando no contrário dessas horas
eu posso me debruçar sobre
um pedaço de papel e
escrevendo poemas que não
valem um centavo
realizar a maior das resistências.

Gran Torino


Para Bukowski

Ela me liga de madrugada cheia de cachaça na cabeça pra dizer que está na Lapa e que tudo ali a faz lembrar de mim era pra eu ficar puto mas acabo achando engraçado ela chapada tentando ser poética pra me impressionar (algo como “te vejo em cada esquina te vejo brotando dos arcos”) você não nasceu pra poesia garota! desligo o telefone pensando que ao menos ela é linda e que por isso não precisa ser poeta e acho que até vou dormir feliz por agora saber que alguém é capaz de sentir saudades minhas enchendo a cara pelas sarjetas da Joaquim Silva.