sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Tristitia (ou Do Assassinato Como Uma Das Belas-Artes)


Eu amava as suas sendas tortas
a largura do seu sorriso
eu amava os s(m)eus assassinatos
e você sabia.

Você adorava me ver enforcado na
árvore do seu quintal
meu corpo dependurado balançando
enquanto você batia palmas.
A minha morte era o seu espetáculo.

Eu amava a sua nudez no banho
a sua nudez sonolenta na cama
o seu corpo imenso
(maior que o box do banheiro
maior que a cama
uma galáxia inteira) e
imaginava o cinema:
via você dançando no Blaue Engel
eu fantasiava que você era
a minha Cabíria
a minha pretty woman
a minha belle de jour...
Pois era isso que você era:
uma puta cinematográfica
hollywoodiana
francesa
alemã.
Era todas as mulheres e
portanto
todas as mortes possíveis:
as mais solitárias
as mais doces
as mais duras...

Eu amava os seus cabelos como
garras de leão rasgando o seu rosto
escondendo a sua cara inteira menos
o meio-sorriso malicioso.
Eu amava a sua mão de homem
os seus dedos grossos brutalizando a
fragilidade das coisas.
Eu amava sobretudo o seu
jeito freudiano de ser
quando todos os seus minutos gritavam
em uníssono:
“Todo prazer é erótico!”

Eu amava a sua fenda estreita
a largura do seu sorriso
e
mais que tudo
eu amava e odiava o seu diário suicidar-me.

A sua existência
a sua possibilidade
o trajeto de um lado a outro do seu quadril
já era por si só
o embate de uma vida inteira.

Elegia para Nix


Para Gabriel

Onde agora existe a noite que
nos acolhia irmão?
A noite que nos sussurrava seus
segredos e
em troca acobertava nossos crimes:
você lembra que
nas veias da noite caminhávamos como
dois bandidos
como vagabundos
vira-latas de rua?
Mas éramos também reis
coroados no cansaço da madrugada
éramos deuses embriagados de vinho (barato)
e cerveja (de um real).

E agora essa velhice tão cedo
esse silêncio
essa imobilidade ganhando os
dias palmo a palmo.

Por onde andará a noite geradora
dos nossos interditos?
As horas em que éramos cúmplices
de bebedeira
de luxúria...
de vida afinal.
Onde cada luz de poste era
uma iluminação nirvanica
onde tínhamos um estoque de risos
e éramos ao mesmo tempo garotos sem rumo
e também homens lamentando o passado.

Naquelas noites em que tudo colidia
em desejo e
no desejo encontrávamos uma
estranha forma de sermos felizes
(a noite nos diz de mais de desejo que
qualquer outra coisa).

E quando a manhã nos entregava o
seu silêncio
apenas nós sabíamos o que havia
se passado no cerne agudo da noite.
Apenas nós
dançarinos dionisíacos que voltavam pra casa
exultantes feridos e
embriagados...
Era nossa Walkabout.

Essas horas irmão
talvez hoje
rolem das mesas nas últimas garrafas
dos últimos bares do mundo.
Mas o nosso amor (essa transcendência)
esse jamais escorrerá pelos bueiros.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Locus


Um velho enquadrado no escuro da
janela do seu apartamento.
Em um bar de esquina um chope gelado
num dia quente de chuva.
Um rapaz gay correndo e brincando
me arranca um sorriso.
O instante do beijo debaixo
de um guarda-chuva azul (a única
cor azul no dia).
A mulher que espera na porta do
shopping me fala mais de saudade
que de anseio.

Imagens e afetos que
no redemoinho das horas suburbanas
nos diz:
prosaico.
Mas o olho do poeta contradiz
o cotidiano absoluto:
é no cerne desses fenômenos que
a poesia existe violentamente.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Imagens Sacras


I
A sexualidade trágica de Schiele me domina.
Schopenhauer na cama ejaculando
pessimismos no lençol.
As flores murchas do criado-mudo
sussurrando quartos de motel.
Antigos abismos me propondo absurdos
no primeiro pensamento da manhã.
O arroz da panela se movendo como os
vermes do saco de lixo que esqueci de pôr fora.
A paz estilhaçada nas ruas amanhecidas
do Engenho de Dentro.
O desejo fazendo circunvoluções nos
pontos de ônibus.
Lâminas faíscam nos tetos dos carros
enquanto duas estudantes lésbicas e lindas
se beijam no último banco
fazendo Artaud sentado ao meu lado sorrir.
Ormud e Ahriman se digladiando no
céu de chumdo do Riachuelo
enquanto meninos empoeirados escrevem com mijo
o nome de Rimbaud sobre muros grafitados.

II
E numa noite submersa ela me ligou
chapada de álcool e de Blake e
fui encontrá-la sugando águas dos olhos e
de um chafariz.
Ela me propôs o teste de Rorscharch com
dez módices usados
enquanto a Sofia Copolla nos filmava
(mesmo eu dizendo que preferia o Murnau).
Quando desmontaram o set de filmagem eu estava mesmo
era no meu próprio quarto onde anjos depenados
giravam cuspindo rosas e febres
e na penumbra eu vi que nenhum deles
tinha o rosto dela.

Ideologia do Amor


“Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum trocado pra dar garantia”
-Cazuza/ Frejat

Deveriam pagar salário aos
que se amam de verdade
(complementado com um bônus
para o homem comprar flores
para a mulher comprar lingerie).

Ter ouvido ela me dizer isso sorrindo
(se referindo a nós dois)
inundou o instante de tal beleza que
abraçado a ela
acreditei que repousaria no seu corpo
eternamente sem esperar pagamento:
ela nos alimentaria
e nos vestiria
de todo esse amor que ela planta
nas pequenas coisas do dia a dia.

Recorte da Rocinha


Todos eles já homens (mesmo
os que só devem ter quinze)
mas carregando suas armas
(suas pistolas prateadas seus fuzis negros)
parecem crianças que esqueceram de crescer
prontas para jogar seus jogos hobbesianos.

Movem-se como deuses da morte
(como são todos os deuses da
história do homem) com seus olhos
injetados de paranóia e fúria.
Atocaiados nos becos
afrontando a neblina branca que
desce o Corcovado
expõem seus corpos negros.
Gregos.

Descamisados.

Influxo da Manhã


A luz vagarosa perfura
as cortinas
persegue os últimos vestígios da noite
que ainda se escondem nas frestas
da arquitetura
embaixo dos carros
debaixo da pálpebras pesadas dos
que acordam
(mesmo sem despertar).
Amanhece mais um dia e
o primeiro pensamento que
me assalta é:
porque amanhece?

Penso se a manhã de outros países
(que não amanhece
nesse momento) será
a mesma que essa...
será igual para uma estudante chinesa?
para um caçador Massai?
para um operário dinamarquês?
Deles
no entanto
eu não sei
não poderei mesmo saber.
Mas sei das manhãs da senhora que
todo dia
lava seu quintal no Engenho Novo
sei das manhãs da mulher que
todo dia
fuma numa varanda da Lagoa.
Sei da fila de estudantes no ponto
de ônibus em Laranjeiras
das pernas de creme da estudante
que entre as meias e a saia
são da cor lenta da manhã.

E daqui desse amanhecer no Jardim Botânico
até a noite no (talvez no) Méier
tudo será como é desde o início:
a duração de um embate.
Mas quando o crepúsculo se abater novamente
calando a velocidade do dia
enquanto todos sentem na pele a
proximidade do escuro e do sono
(quando não houver mais nenhum
resquício da manhã na hora das coisas)
será o momento de acordar para
os vampiros as putas e os poetas:
pois apenas eles
com os olhos marejados de tanta madrugada
sabem como comungar com
a tessitura íntima da noite.