quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Poeta


Passo pela rua Duvivier e
tento adivinhar em qual daqueles
apartamentos acesos a esta hora
existe o poeta Ferreira Gullar.
Imagino o que ele faz a essa hora:
se escreve um poema na meia-luz do escritório
se lê preguiçosamente um livro em seu sofá
ou já sobre a cama
a maneira dos velhos
usa suas mãos esqueléticas
manchadas e carcomidas
para coçar a perna sem nem
mesmo levantar a cueca samba-canção.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Peixe-Palhaço


Quando ela parou ao meu lado num
ponto de ônibus da Nossa Senhora de Copacabana
eu vi que ela era tão bonita
que dilui do meu olho o horizonte de
poste e asfalto de onde viria a condução.

Mas ela era tão masculina que
quase poderia ser um garoto...

Pensei que só eu sendo tão mulher
desse jeito que eu sou
para admirar alguém tão homem
do jeito que ela era.

De Dentro da Vida


Televisão ligada:
misses sorrindo na Venezuela
mísseis caindo sobre o Afeganistão.
Enquanto isso
este sujeito silencioso que
atende pelo nome de Luis Claudio
(ora Kavita Kavita)
prepara sonolento
um copo de leite numa
cozinha da rua Frederico Méier.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Meia-Hora


Enquanto você dorme
(você que não dormiu a noite toda)
da porta do quarto eu
te lanço meu olhar mais terno.
A tarde é silêncio
as cortinas estão fechadas...
Só o ventilador acaricia suas
perninhas cruzadas iguais a de
criança que a mãe embalou antes do sono.

Dorme que teu sono é merecido.

Dorme menina forte e chorona
descansa que eu te velo aqui da porta
como a única coisa que posso fazer
por não ser tão belo
por não te merecer em todo tempo
por nunca conseguir estar a altura da
tua paz
da tua angústia.

Você não sabe
mas eu sou teu também
no teu sono.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Meditações Extemporâneas


I
O instante-intervalo entre as
batidas de um coração são
o silêncio mais absoluto que existe.
A via-láctea inteira (com sua
mudez eterna) é este átimo de
um pulsar.
A vida é o átimo de um átimo
por isso pra nós
que vivemos a milhões de anos
entre duas pulsações
o silêncio do universo parece infinito.

II
Conheci mulheres que me pediam para
escrever quilos de poemas sobre elas
como se a poesia fosse um objeto de fábrica...
Mas como escrever tanto se
a minha vida
a vida delas
a vida de todos os outros
se resume a um único verso?

A vida é um único verso.

III
E eu aqui grão
eu aqui ínfimo
um verme de curta duração
que revolve a culpa (como se fosse
excremento) por saber
que enquanto outros vivem verdadeiras tragédias
minha agonística máxima é escrever poesia
é achar atrizes pornô parecidas com ex-namoradas.


IV
Este poema nada mais é
(como qualquer outro é)
a reafirmação de que tudo o que
parte não se vai absolutamente.

A carne do poema é a memória
o íntimo é a saudade.

Por isso não esqueço as fórmulas
que nós os alquimistas
usávamos para transubstanciar cerveja
em panacéia nos bailes funk da Vila da Penha.

V
Quando Nefertiti apareceu
bebendo uma tequila atrás da outra
(o cigarro aceso na mão)
em cada trago até a sua careta era linda...
Ela havia se tornado todo fenômeno possível:
Pro meu olho
enquanto ela estivesse ali
ela seria a paisagem inteira.

VI
O tempo do universo é o tempo de
um único pulsar.
A vida é um átimo de um átimo.
E um dos milagres reside nessas belezas que
quando surgem (a tequila o cigarro)
nos roubam qualquer temporalidade
e transcendem nossa finitude toda.

Ennui


Antes bicho que homem.
Antes um cupim
um cágado
um urubu-rei.
Antes um bicho que este homem.
Assim não conheceria essa
tristeza que é só de homem.

Meu corpo anda amanhecendo muito lento
meu estar nas horas é quase um sono
toda minha fala é uma nolição da
minha língua...

Queria o poema assim:
altivo em sua dor
imenso de não caber mais todo esse tédio.
Queria um poema como um
non-finito de Michelangelo
este deus frágil que só sobreviveu
enquanto soube fazer sua angústia ir
morar no mármore.

Nasci com esse rosário de vontades
em torno do pescoço e
cada poema
cada masturbação
é uma oração que faço enquanto vou
me esvaindo pelas geometrias do apartamento.
Mas não há paraíso possível a
quem só louva o corpo
(não há Beatriz pura nos lugares onde
desejo estar)...

Só há inferno para quem olha nos
olhos dos pássaros sem mundo
engaiolados nas varandas
e recebe deles o convite para assobiar
o canto dos prisioneiros.