terça-feira, 28 de setembro de 2010

O Retorno de Saturno



Então é setembro:
o frescor das flores
na chegada da Primavera e
o dia do meu nascimento.

Alguns sentiriam nisso algum
senso de beleza
mas eu digo que nasci num
dia de Sol negro.
Desde criança as pessoas enxergam
em mim um semblante preocupado
os olhos (atrás dos óculos) injetados
de melancolia.

(O mp3 me faz concordar piamente
com Belchior contrariando Caetano:
“Nada é divino
Nada é maravilhoso!”)

Sob o sol desta manhã (uma
manhã perdida do Méier) eu
carrego um grande desencanto
cada fibra se agride de saudades
cada célula se atrita de desejo
(saudade é um desejo no tempo inverso).

E enquanto penso na vida
(enquanto caminho entre coisas que
se movem e as que não)
vou me sentindo um Nerval desatinado
pelas esquinas do subúrbio.

29


Amanheço no dia do meu
aniversário
(como amanheço em qualquer
dia) e as paredes brancas do
quarto são uma vertigem.

Ultimamente ando passando os
dias assim:
pela manhã
arquitetando vilanias no silêncio da cama
à tarde
achando lindas as famílias chinesas
das pastelarias
e quando anoitece
enumerando o nome dos amores que
tive em cada bairro no caminho de
volta do trabalho.

Agora tenho quase trinta e
toda essa pulsão de morte quase
só me deixa da infância as
saudades das salas de pediatria.

A filosofia e a poesia são exercícios vãos:
não respondem nada.
A bebida e o sexo as vezes
quase chegam a responder...
mas a vida é não haver resposta.

Os pêlos dos meus braços todos
cheirando esse cheiro acre de passado
esse cheiro de coisas velhas
amareladas
o mesmo cheiro dos livros encaixotados
me fazendo crer que também sou
feito de páginas.

E hoje aqui
na sala no quarto no banheiro
comemoro meus vinte e nove mil
anos de idade.
Sou a relíquia de uma civilização
que não quis existir
sou uma múmia chinchorra
uma tábua cuneiforme
um soldado de terracota
uma Vênus desmembrada
eu sou um menir solitário na
planície do mundo...

Um sol negro desponta no horizonte
desse vinte e dois de setembro e
vejo se criar um dia tenebroso.
Farejo o hálito de Saturno retornando com
a boca escancarada
(o Tempo devorando o que é corpo)
e eu sinto nessa efêmera manhã
do século XXI
o que sentiu Goya
a trezentos anos atrás
(em um vilarejo na Espanha)
enquanto encarava o seu Cronos.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Zéfiro Seduzido


O seu cabelo ao vento
desse negro absoluto
solto no ar
é uma serpente de petróleo que dança.

Não.
O seu cabelo ao vento
desse negro absoluto
cobrindo seu rosto
é como um véu de assassina árabe.

Esse vento que teima
em pôr uns únicos fios presos na
separação dos lábios dela
(quando ela os prende atrás da orelha
isso já é toda a poesia).

Enquanto ela caminha
o vento força seu vestido contra
os seus peitos
vai frisando o tecido suavemente
para além da sua cintura:
ondas que escalam seus quadris e
dissolvem-se contra duas montanhas eriçadas.

E nesse dia de vento
como é normal acontecer
tudo vai perdendo a cor...
mas nos lugares por onde ela caminha
o vento ergue seu vestido azul clarinho
e vai derramando a cor de creme das
suas coxas pela calçada inteira.

Porém
esse vento quando a envolve
não é um caótico sopro de ar:
tudo o que nela se agita
se agita em harmonia.
No seu cabelo
no seu vestido
o vento é o próprio movimento das coisas
é a vida mesmo que as coisas adquirem.

Vê-la caminhar assim dentro do
tormento do vento é sublime:
é como ver caminhar a Vênus do Boticelli
dentro de um quadro de Van Gogh.

Vão Fechar O Hotel Paris


Deu no jornal.

O que será da Avenida Passos
do Teatro João Caetano
o que será de Vossa Excelência
D. Pedro I
eternamente petrificado ali no
meio da Tiradentes sem a
companhia das meninas noturnas?

Sim
vão fechar o Hotel Paris.
E com ele seus 36 cubículos que
a 65 anos secretam um milhão de afetos.

O Hotel Paris deveria ser tombado.

E agora
quem vier do subúrbio para uma
noite na Lapa
perderá um fragmento de romantismo
no caminho.