terça-feira, 26 de abril de 2011

Sturm und Drang


Com seu gorrinho vermelho em
um café do Leblon ela
estudava Heidegger e ria.
Entre um gole e outro
entre uma página e outra
ela citava Levinás e ria.
E ria.
E ria.
Ria como a mulher do diabo.

Ela ria e suas esbranquiçadas
clavículas ossudas pareciam se
esforçar para não se partir enquanto os
alargadores nas suas orelhas reluziam o
sépia entardecer das seis da tarde.

Através dos poucos fios de cabelo
que escapavam do seu gorrinho
eu olhava além da vitrine a
vertigem dos automóveis e das pessoas
varando o final do dia útil e me perdia…
e com meu sentido de romântico
imaginávamos pertencendo a outro
mundo longe daquilo tudo:
onde eu era a sua Excalibur e ela a
minha azul Lady of the Lake.

Até que ela repentinamente guardou seu
livro na bolsa e sem dizer uma palavra
me puxou pela mão até a rua:
adivinhando meus pensamentos resolveu
naquela hora
que iríamos destruir o absurdo cotidiano.
Na calçada nos desvencilhamos do fardo
de sermos pessoas comuns:
eu me tornei o seu febril homem bala e
ela a minha magricela trapezista.
E nas portas das lojas
e nas janelas dos escritórios
e no sufoco dos ônibus engarrafados
todos acordaram pra nos ver:
pois juntos pelos céus da zona sul
voávamos perigosamente entre os prédios.

E todos que iam e vinham pelas ruas aplaudiram:
aquele era um momento de
supremo embate contra a mediocridade:
reconhecia-se ali dois poetas que
em meio ao entorpecimento da cidade
brincavam alegremente de não morrer.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Contemplação Mnemônica


É uma luz moribunda que se
derrama sobre as pastas dos velhos arquivos
enquanto ele se debruça na mesa entre
seus papéis e documentos.
Ele usa uns óculos redondos e tem
os cabelos meio brancos e nem
sente a inelutável noite acariciando sua nuca.
O silêncio do escritório é indestrutível
(menos talvez por um rádio onde as
músicas cheiram a passado).

No bairro os apartamentos se preparam
pra dormir enquanto ali
na imersão do trabalho noturno
ele nem nota que é hora de sonhar.
Eu reconheço no seu semblante que ele
pertence a essa raça de homens que
perdidos em suas (im)produtivas horas
nem percebe que é triste.

É noite de um abril em 2011 mas
naquela saleta parece-me que
aquele homem e seus arquivos
são manifestações de memórias longínquas.
Talvez ninguém mais os pudesse ver
se ali parasse na calçada e lançasse os
olhos através de sua janela como fiz:
são entes que ficam aprisionados num tempo-outro
e só quem os pode ver são os donos de um
olhar sensível as coisas que se perderam do seu devir.

domingo, 17 de abril de 2011

Carta Para Uma Menina Com Uma Flor

Sim eu sou triste.
Eu nunca neguei nem escondi de
ninguém essa figura patética.
E talvez você nem perceba que me
ama também por uma espécie de pena.
Porque você sabe que sozinho
eu posso me perder por qualquer coisa
eu posso morrer a toa.

É
eu admito
eu sou difícil.
Tenho defeitos que eu mesmo não
me toleraria se eu fosse um outro.
Nunca tinha atentado mas você
me mostrou que a memória é um deles
(talvez o maior)...
Mas como me apartar se as experiências
em mim se litografam?
Se as coisas que escoaram no tempo se
tornam um ingrediente indelével do que sou?

Não acredito nos seus deuses moça
você sabe:
sou um ateu um trágico um esteta e
acima de tudo
um amante do corpo.
E o corpo são cinco sentidos e
mais ou menos
meia dúzia de sentimentos errantes.
E aqui agora
na proximidade dos trinta
percebi que esse corpo é algo que se
desfaz rapidamente e que a
qualquer momento ele pode se aniquilar.
Por isso toda essa minha urgência que
você acha intolerável
toda essa minha sede de vida
toda essa paixão peregrina.

Por isso todos os poemas.

Quando em versos fúteis (vis vulgares sujos
de acordo com você) eu perpetuo
sensações que houveram
é uma tentativa vã de eternizar esse corpo:
meu poema não é pornografia moça:
meu poema é confronto com a morte.

Entendo que você não queira
conviver com isso e isso eu nunca te pedi
mas não pode esperar de mim o
asfixiamento (que faça parar no meu corpo
os pulmões dessa sede
o coração desses afetos).

A verdade
essa que nos recusamos a admitir
por causa de tanto amor
é que você não precisa desse egóico
desse bêbado
desse velho tarado
(talvez um daqueles cavaleiros virtuosos
do interior que você tanto admira).
E eu
que nunca acreditei mesmo na
possibilidade da felicidade
me bastaria voltar a ser aquele que
ainda que rodeado de amigos e amantes
era senhor das suas paisagens íntimas:
aquele que era livre pra abraçar sua melancolia
sem recriminações
que podia se entregar a solidão sem ser
considerado um traidor...

Não há vida possível quando uma
orquídea que só colore sob o sol
teima em tentar crescer nos pátios frios
dum inconsolável e antigo nosferatu.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

La Recherche Du Temps Perdu


Os rolos de filme da memória também
ficam antigos...
as imagens ganham riscos e saltos
os sons (quando há sons) têm
ruídos e estalos.
Isso seria um problema se
eu não fosse um romântico:
acho que até fica mais bonito
quando me lembro da estrela principal
chegando (em um plano americano)
pela Estrada Velha da Pavuna dentro de
um sanguíneo amanhecer em technicolor.

Pangeia


Lanço aqui uma profecia:
mover-se-ão as placas tectônicas e
a deriva continental re-unirá os continentes.
E aí poderei dobrar a esquina da minha rua
para tomar uma cerveja no Soweto e se
quiser fazer compras bastará pegar o
ônibus Méier-Ginza.
Sorrirão-me (com os olhos ao menos) as
mulheres de burka na Avenida Rio Branco
enquanto as crianças em Cascadura farão
guerras com bolas de neve da Sibéria.
Gueixas tocarão cítaras em terreiros
de candomblé e o Flamengo
disputará a final do estadual com
algum time inglês.
Em fevereiro teremos carnaval e em
agosto o Festival de Ganesha...
e numa manhã de domingo o
pessoal da Cidade de Deus tomando sol
pelas praias gregas.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Sweet hours have perished here;


Do sexto andar a
cidade agora é uma paisagem embaçada.
Penso nas noites da juventude
que hoje parecem um devaneio absurdo
uma fumaça entre os dedos
uma visão narcotizada.

Começo a me perder das vontades como
um elemento químico que
perde as propriedades...
e aí se torna uma outra coisa:
mais serena
mais inofensiva
mais morta.

As músicas no rádio insone
passam a ter todas
o gosto implacável da aspirina.

Perscruto o quarto escuro
consulto o relógio (umaetrêsdamanhã)
e o senso de deserto me
lembram Emily Dickinson no sótão.

Sou Emily Dickinson no sótão:

com meu vestido negro e
minhas mãos brancas e finas todas
sujas de poesia:
um corpo frágil no cerne da solidão.

Mas a literatura já me cansa.
não consigo ler mais meia dúzia de
páginas sem me entediar ou ferrar no sono.
E temo que a vida esteja imitando a arte.

Quando a manhã chegar precisarei
tomar café na rua.
Procurarei um lugar que me sirva um
copo de café-com-leite onde
o açúcar possa ser substituído por
algumas colheres de desejo e apego.

Semíramis Urbana


Sentada na calçada
os cabelos negros eriçados como
as pétalas escuras da melancolia.
A tatuagem no ombro
o cigarro entre os dedos te
denunciam um anjo caído...

Mas nos meus olhos de Saturno
(soturnos)
você contradiz a sua imagem quando
derrama neles dois
todo o anseio dos seus olhos doces e gasosos
como se fossem feitos de guaraná Tobi.

Fogo de São Telmo


A chuva fina faz
rachuras líquidas no desenho da paisagem
e é dentro dela que a voz das
ruas se torna mais límpida:
ouço a tristeza do concreto manchado
imiscuído de umidade
a cólera das antenas vociferando
contra o céu.

Os prédios são quase
negros dentro do chuvisco
automóveis escuros recusam
a imobilidade e
ela (seu casaco rosa no dia sem cor)
passa na calçada imantando meus
olhos na argolinha do seu nariz.

A memória se atrita contra as saudades
do que a cidade não sabe
e esse embate cria fenômenos elétricos que
reluzem na solidão das antenas
na carcaça dos automóveis
no feixe de prata no nariz da passante.

A chuva é fina sim
mas tudo me é tempestade por dentro.

De Dentro da Vida II


A respiração de um cão adormecido
cria uma mancha de umidade no
azulejo vermelho.
Uma formiga passa sobre ela deixando
microscópicas pegadas líquidas.
E esse ínfimo acontecimento na
tessitura do universo (como é
também o meu existir) não é
notado por ninguém mais além
de mim
e nunca mais
nunca mais se repetirá do mesmo modo...

Quando eu morrer
esse instante tão tingido de vida
se irá pra sempre comigo.