domingo, 25 de dezembro de 2011

Still Life


Fazia tanto sol naquelas
tardes de verão em Inhaúma
que não se demorou pra descobrir
que aquele sol tinha um nome.
Um nome que era
ao mesmo tempo
uma chuva & uma antichuva:
um nome que até hoje
se pronunciado na imensidão da manhã
rasga o dia de um lado a outro
e perdura até as esvaziadas horas noturnas
quando
sobre a escrivaninha da solidão
põe fogo em todos os papéis em
que tento lhe escrever.

A Morte de Kavita Kavita (um necrológio)


Ó poesia que me escapa
musa assassinada
serei eu o teu estrangulador?

Meus amigos são todos atinados na vida:
são fisioterapeutas
bancários
professores.
Ganham o pão com honradez.
Mas e tu poeta Kavita Kavita?
Tua labuta é o ócio
é sentir o dia tão absolutamente que
o desintegrar das nuvens lhe é audível
que
o envelhecer das coisas lhe é visível frame a frame.
Tua profissão é se doer pelas moças que vão e não vem
em tua carteira de trabalho abundam filosofias vãs...
O que fará agora sem ter como sobreviver?

Ah poeta
partícula substancial de memória
mundo inabitável que telescópio ou
microscópio nenhum lança o olho re-velador:
o que te roubou de tua sede?

Experiências não há mais em tua vida
o tempo da solidão (tão necessário)
não há mais!
As memórias se esgotaram
amantes não podem mais haver
a Lapa...
a Lapa agora é só uma desalmada
estampa em uma camiseta.

Não há mais nada em tua vida que
se possa habitar de poesia e
talvez agonize aqui
no corpo deste poema
os últimos versos que tu escreverá na vida.

Precisará poeta
daqui pra frente
buscar a religião ou
a auto-ajuda ou
as drogas ou
o suicídio...
Porque lhe parece que a poesia já
não quererá mais ser o seu modo de
se salvar do mundo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Na Primeira Manhã

(ALCEU VALENÇA)

Na primeira manhã que te perdi
Acordei mais cansado que sozinho
Como um conde falando aos passarinhos
Como uma bumba-meu-boi sem capitão
E gemi como geme o arvoredo
Como a brisa descendo das colinas
Como quem perde o prumo e desatina
Como um boi no meio da multidão

Na segunda manhã que te perdi
Era tarde demais pra ser sozinho
Cruzei ruas, estradas e caminhos
Como um carro correndo em contramão
Pelo canto da boca num sussurro
Fiz um canto demente, absurdo
O lamento noturno dos viúvos
Como um gato gemendo no porão
Solidão.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Meninas Góticas


Meninas góticas caídas pelas calçadas babando vinho com seus vestidos pretos saias pretas cheirando a naftalina que escondem às vezes mostram suas bundinhas pequenas e absurdamente redondas e a noite viscosa escorrendo nos olhos escorrendo nas clavículas glaciais fingindo chorar fingindo desprezo cortando os pulsos e desejando o apocalipse se beijando na boca nas paredes escuras banhadas por postes que iluminam fumaças e se achando vampiras e se achando as mulheres do demônio e cultivando uma ou outra dor num quarto escuro recendendo mofo enquanto melancolizam escutando no último volume bandas escandinavas meninas góticas querem morrer e meninas que querem morrer me dão um tesão do caralho.

Canto das noites sem amor nº7


A noite tem peso.
O barulho dos motores através da janela
abandona os quilos da noite em
meus ombros: são as engrenagens da
hora que não mais movimento.
Ando triste como uma concha na estante
como uma bala de fuzil vis-à-vis com
o olho do condenado
como um vestido de noiva no
armário de uma viúva.

Um nome um rosto se insurgindo
no computador não é um nome um rosto:
são pixels.
Assim como não são um nome um rosto as
músicas desesperançadas de 25 anos atrás
os carros brancos fora de linha
as ruas úmidas da Baixada Fluminense.
Não
definitivamente não são um nome e um rosto a
Rua Joaquim Silva depois da chuva
o cheiro de óleo diesel nas abafadas mecânicas
o sábado e suas manhãs imensas.
Não são um nome e um rosto...
Um nome e um rosto era ela que
gostava do minhas palavras pessimistas
era ela que adorava os filmes que a faziam chorar
e que amava tudo que a deixasse mais triste
(só que agora
tudo o que restou de sua beleza foi
essa arte de engravidar de caras diferentes).

Vejo a admiração se reduzindo a
sobrancelhas soerguidas
a poesia se diluindo como tinta na água
e não deixando nenhuma nobreza daquele
seu antigo assaltar-me.
As madrugadas agora habitadas por sonhar
mulheres que nunca conheci e que
ao acordar
deixam como rastro um
dia partido ao meio (Freud explica).
É esse desejo rascante morando em tantas paisagens
que sonhar quem nunca houve é
ensaiar minhas pequenas mortes (Freud explica?).

Aqui nessa janela
encolhido dolorido ensimesmado
suportando qual um Atlas magricelo
o peso da noite que se esvai no tempo inexorável.
É noite de sexta-feira e tudo que ficou dos
risos da juventude são essas marcas de
expressão nos cantos da boca
esse corpo envelhecido que se põe
a passar a noite imerso em tristezas:
a internet o videogame
um filme de Pabst
a internet o videogame
um livro de Vargas Llosa
a internet o videogame
e essa vontade de morrer.

Com o tempo todas as coisas se
transubstanciam
e o até o que era amor à vida se
descobre apenas uma indução a
mais silenciosa forma de desespero.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

À Lapa

(GRAÇA CARPES)

sob os Arcos da

Lapa a

passagem do

tempo

feito mágica o

ontem e

o

hoje entrelaçam as

mãos e brilha sonoro

nos

olhos dos meninos

e

meninas repletos de sonhos a

contemporânea fusão





vai uma cerveja vai

uma peleja um

acorde um

beijo

vai

?





a

Lapa sensual e bi

em suas espumantes cores

sacoleja a conservadora moralidade





o ator da nova vida traz um pé fincado

na

raiz do samba e

o

outro

ensaiando um

passo

funk





punks bichos-grilos intelectuais

cineastas atores heteros e gays circulam

todos a

mesma orgia das artes





sob o oculto olhar do exu das ruas e

das

falanges dos abandonados filhos de Cosme e Damião

bem vindas

são

todas as tribos

!

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Trenodia para um Velho Pirata


Queria o poema que abarcasse
- cheio de beleza -
essa súbita melancolia mais forte.
Queria o poema que abrigasse o
cerne dessa noite fria onde tudo se
contorce dentro de uma fogueira indizível.
Queria o poema que reafirmasse que
no poema tudo é ausência
que me perdi das minhas paixões
que anseio novamente navegar.
Queria o poema que dissesse sem desvãos
- mais do qualquer outro já disse -
sobre o farol aceso desses dias mortos:
-Mares noturnos!
Amores de cais!
Eis aqui de volta teu marinheiro-poeta
este trapo!

Patetismo



Um sentimento? Paixão. Não não o amor que seria a resposta politicamente correta a esse tipo de pergunta.O amor não é um sentimento o amor é uma trama obscura. Bem ao contrário da paixão que é clara límpida e quente como o sangue de um fuzilado. A paixão é tempestade de verão: efemeridade derrubando casas afundando navios. O amor é chuva fina dia adentro: constante mas não cria estardalhaços. Por isso não desejo nada que não seja apaixonadamente: quero apenas as coisas que me ponham escombros me interessa muito mais as coisas que não duram.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Cry Little Sister


Uma imagem agora é tua única presença
uma imagem que fala.
Mas eu sei que você não é mera filosofia e
nem tela de cinema quando vejo
espalhadas por Madureira
as migalhas daquele pão não comido mas
que tu me ofereceu mergulhado num copo de lágrimas
o pão que triturei no espelho amnésico dos
banheiros de shopping.

E no território dessa distância
há dias em que a substância do mundo
se transmuta em estranha consistência:
todas as coisas se constituem do pó que são
teus silêncios
tuas lacunas
teus parágrafos
a tua ausência pulverizada.

Vã Filosofia


Enquanto ela dirigia insandecidamente
sempre me pedia pra falar de filosofia.
Quem sou eu pra falar de filosofia?
Mas mesmo assim eu tentava:
Era Nietzsche desviando dos carros
Heidegger parado nos sinais
Schopenhauer a cem quilômetros por hora.
Eram alemães mortos pela Avenida Brasil inteira.

Pracinha de Saquarema


Na pracinha de Saquarema à noite
se avistavam estrelas falsas:
eram as luzes frias das bóias perdidas
no meio da inexistência.
Na pracinha de Saquarema
entre barraquinhas de pipoca e cachorro-quente
eu desejei todas as meninas.
Mas só as tive salgadas
cheirando a mesma maresia que carcomia os barcos
e que carcomia as pilastras onde os casais
quase fodiam dentro da brisa gelada do beira-mar.

Elogio-Elegia para um Puteiro


O único puteiro do bairro pegou fogo.
Como pode um bairro com tantas padarias
farmácias lojas de departamento etc etc
existir sem um único puteiro?
Quase não é possível romance entre os pães
ou
poesia entre os cabides da C&A
ou
exercitar o desejo comprando analgésicos.
Mas um puteiro era o locus privilegiado
dessas coisas tão caras a vida.

Mas pelo menos
ninguém poderá dizer que
pra um prédio pra uma casa
- ainda mais pra um puteiro -
um incêndio não seja o fim mais romântico.

Senhsucht


o quero ser triste
Como um poeta que envelhece lendo Maiakovski
Na loja de conveniência

-Zeca Baleiro

Lojas de conveniência são lugares onde
sou triste pronunciadamente.
Com sua luz cinza
seus pães abandonados e
seus funcionários sonolentos
elas afirmam que existir é um esforço descomunal.

Lojas de conveniência me falam ainda
de coisas que não permanecem
que tudo passa por essa vida
como na estrada escura ali adiante
onde vez em quando rasga o sereno
o instante de um automóvel furioso.

domingo, 2 de outubro de 2011

Séverine Serizy


Pensei em pinturas barrocas:
no cubículo escuro
a luz lilás deslizando em tua bunda
e arroxeando o teu cu moreno.

A Persistência da Memória


Das mulheres passadas já quase não
resta sensação ou vívida lembrança.
Tudo é nebuloso como se
só houvesse havido na esfera do sonho.

Das mulheres passadas só lembramos
o nome a cara e talvez a voz
e mais nenhuma impressão:
é como se não as tivéssemos vivido e
sim as assistido no cinema.

E de tudo o que fizemos
fica uma tristeza branda
meio amarga meio translúcida
quase como um copo esvaziado do uísque
onde o gelo ainda permanece intacto.

Polaróides


Entre a fumaça do caminhão que
desvanece em volutas acinzentadas
cabelos pretíssimos ondulam e
cerejeiras rosadas que florescem:
há beleza no dentro da cidade.

E nos cartazes eleitorais
nas placas das pensões abafadas
a tua presença permanece como um
nome impresso em tintas que desbotam.

São Cosme e São Damião


“Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!”

-Casimiro de Abreu

Como é beleza poder ver todas
essas crianças peregrinando atrás
de saquinhos de doce com a
resolução de cruzados rumo a Terra Santa
Como é lindo vê-las pelas esquinas suburbanas
todas elas sujinhas
cabelos desgrenhados nas meninas
pele acesa de suor nos meninos
correndo debaixo do sol idoso de setembro.

Elas gritam.
Suas gargalhadas ecoam pelas geometrias da rua:
uma matilha de bandoleiros invadindo vilarejos
alheios a fila aflita do pronto-socorro
ao trânsito absurdo de trabalhadores mortos
as contas que mesuram o viver bem de ninguém.

São todas crianças pobrinhas
(crianças ricas correm atrás de doce?)
e que um dia serão proletários
desempregados
professores
traficantes
mães e pais...
Mas só por hoje
tudo é uma alegria de infância:
hoje os carros e lojas e postes e outdoors
observam e invejam calados a
verdadeira vida que pulula nas calçadas.

Como Cortar Uma Garganta Passo-a-Passo


Maldita internet e essa sua
imaterialidade que não me permite
amassar essas tuas mensagens
rasgar em pedacinhos os teus recados
que denunciam a vida fora nós e me
deixam aqui nesse desvario a fogo lento.

Mas o que você não sabe é que
sou capaz de fazer um escândalo na
porta da tua casa
de quebrar teus copos
queimar teus armários
rasgar tuas roupas e
- o que seria o fim pra você e um prazer pra mim -
destruir tua coleção inteira
de CDs de bandas moderninhas!

Ninguém pode supor mas
essa minha costumeira calma é só
imagem e superfície:
pois se me esquece por qualquer coisinha à toa
por baixo da pele eu viro o bicho que
vira uma mulher ferida!

Musa Promíscua


Ela comia médicos
advogados
bandidos
mecânicos
motoristas
etc etc.
Ela que já teve na plenitude da
noite voraz mais de cem homens
e dentre eles
até mesmo um poeta
(quantas mulheres no mundo poderão se
gabar de ter tido um poeta
- essa espécie semi-extinta e melhor amante de todas -
no alto-mar da cama?).

Por isso na rua
no bairro
no trabalho
ela era uma muito mal falada.
Só que isso eu nunca entendi bem...
se ela era tão “piranha”
por que então na rua
no bairro
no trabalho
ela era a mais altiva de todas as mulheres?

22 de Setembro


“And my soul from out that shadow that lies
floating on the floor
Shall be lifted—nevermore!”

-Edgar Allan Poe

“O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais”

-Caetano Veloso

Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Álvares de Azevedo morreu de tísica poética aos 21
Byron de febre apaixonada nas
guerras gregas ao 36
Hemingway
ah Hemingway! Esse teve mais estilo:
estourou a cara com uma espingarda aos 60.

Mas que lógica é essa que nos furta a eternidade?
O que é o tempo se não nos é dado a conhecer
cada pequeno acontecimento?
Ando procurando a juventude que
se perdeu irremediavelmente.
Perdeu-se nas noites frias e seus
copos ébrios
nas coxas recendendo a colônia das mulheres
nas ruas desertas onde as madrugadas duram cem anos.
Ou
perdeu-se também nos dias quentes
nas praias claras no triste encontro com o mar
nas casas de sábado cheirando a azul
nas ruas movimentadas onde sempre há
um demônio espreitando ao meio-dia.

Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Chegar a essa altura e não ter onde
cair morto
não ter ânimo de nada
não ter nem mesmo o que fazer a não
ser correr atrás de dinheiro
escrever um ou outro poema ruim e
arquitetar crimes hediondos na primeira hora da manhã.

Tardes dentro de tardes
morrendo em jogos de videogame
morrendo na filosofia apaixonada dos alemães
morrendo na poesia que só se vive pela memória.
Morrendo em mulheres que passam
morenas
negras
pardas
ou
brancas como ela e com o
mesmo perfume de bruxa fajuta.
E talvez ainda
com a mesma bocetinha rosa
do mesmo tamanho
do mesmo gosto
com o mesmo cheiro.

Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Há menos que esse ano um carro me atropele
ou
eu seja escolhido por uma doença incurável
ou
um assassino meta uma bala no meu peito
ou
eu resolva finalmente atender o convite da
janela para o súbito vôo
ainda haverá no ano que vem mais um
dia de sol negro e uma diferente forma
de se deteriorar.

30 anos e não ser mais que uma sombra que
qualquer facho de luz pode aniquilar.
Passaram-se algumas estações e
ainda estão lá os azulejos azuis.
Através da janela eu ainda vejo os azulejos azuis
daquele apartamento da rua cotidiana.
Os azulejos azuis que presenciaram tantas vezes o banho dela
os xampus atrás do vidro canelado que
ensaboaram seus cabelos...
Mas ela agora anda numa ilha do Velho Mundo
escutando Goo Goo Dolls e
cuidando de animais doentes mas
felizes por receber os cuidados das mãos dela.


Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Ser íntimo dos vilarejos bombardeados da segunda guerra
das repartições públicas fechadas
da carne azul da Região dos Lagos
do cheiro de giz de cera dos jardins de infância
das famílias chinesas das pastelarias.

A cada manhã o céu é um rasgo entre os prédios
janelas emparelhadas e olhares que
se entrecruzam mas se recusam a permanecer.
Os salões religiosos na noite silenciosa
os puteiros de Madureira na noite terrível
trovejam dentro de mim suas sacralidades gêmeas.
A Frei Caneca e seus faróis vermelhos
o Campo de Santana e seus milhares de gatos
como espíritos sem descanso embaixo da chuva turva e
na minha boca um gosto de caldo de cana e tequila
um gosto que ficará ressoando mil anos depois de mim
em bocas que ainda não nasceram.



Completar 30 anos nesse mundo
é fácil?
É difícil?
Logo estes óculos
este semblante preocupado
me darão o ar sério
austero
de escritor de professor
velho e decadente.

Sozinho em um bar ou
no abafado hermético de um quarto
escutando alguma diva morta
(conheci Piaf através de
uma amiga melancólica nessas
nossas conversas sobre a validade
da vida do amor etc etc)
logo não mais existirá o rapaz de riso largo
-e que mesmo agora só vejo nas fotografias-
não mais o corpo jovem e esguio
esculpido pelas horas de suor e dor
das academias...

O que haverá nos instantes do ocaso?

Ainda carnavais?
Ainda salas de cinema?
A possibilidade de romance?
Praia?
Lapa?
(Porra, como isso dói...)

30 primaveras e ainda não sei responder nada
mas sei que o amor
-mesmo que seja mais uma vanidade -
torna tudo eterno em um instante
(e fora deste instante tudo é mediocridade).
Portanto
enquanto houver amor em tempos tristes
enquanto houver poesia em dias sombrios
eu haverei de ser maior do que qualquer morte.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Carmilla



“(...) eu fui a coisa mais brega
Que pousou na sua sopa”

-Lobão

Quando fui ao banheiro dela
me assustei:
Sua banheira estava até a boca de sangue!
Cheio de pavor corri para cama e
a encontrei nua e sorridente:
- É o sangue dos meus e minhas amantes...
-ela disse com seu típico tom blasé-
Mas o seu
meu doce poeta
é muito especial para mim...
o seu eu guardo no armário da sala
numa garrafa de Johnnie Walker!

Hoje percebo que foi
uma das mais bonitas declarações
de amor que eu já recebi.

Sonho


I
A claridade através das cortinas ganha
corpo vagarosamente.
São cinco horas da manhã e
acordei terrificado de um sonho bom.
Onde tive novamente teus cabelos alquímicos
tremeluzindo na inconstância da manhã
onde a separação dos teus lábios fechados era
um fio que se abria a todo momento para
fazer nascer para a visão os
teus dentes pequenos.
Acordado me agarro aos últimos vestígios da
tua substância onírica mas a
claridade me impõe inelutavelmente que
minha realidade inteira já não é mais
a morada da tua presença.

II
Era um sonho só.
E o que importa esse sonho se
já é quase hora de ir trabalhar?
Logo ele vai escoar vagarosamente no café da manhã
entre o trânsito sonolento
entre contas atrasadas e
outras bundas que passam nas calçadas
até que ao meio-dia já não reste quase nada dele...
Vou almoçar sossegado porque do
teu cabelo alquímico
dos teus dentes pequenos
ao meio-dia
não restará mais quase nada.
Não restará quase nada além disso que
fulge fracamente quase sem existir
mas que
-em todos os dias que correm-
trago comigo na
memória violenta de cada amanhecer.

sábado, 3 de setembro de 2011

Balada Pop para uma Garota Chilena


Nessa manhã acrílica lembrei
dela ali
na estação nova do Méier
o cabelo dessa vez descolorido
as retinas estouradas de tanto trilho de trem.

Ela tinha um MP3 no ouvido e
o mesmo perfume de mal-gosto de oito anos atrás:
aquele que ficava três dias nos meus
braços desrespeitando solidões.

Naquele dia
ela me esperava disfarçando calma como
que já pressentisse a inversão do tabuleiro:
ao tentar me prender novamente
em sua teia
ela se decepcionou ao ver que eu havia
me tornado uma mosquinha esperta demais:
nos oito anos de intervalo entre nós dois
eu fui treinar em alguns bares
puteiros
e casas de família:
outras vagabundas haviam me ensinado como jogar.

Cleópatra


O que pensa a mulher-serpente quando
caminha com seu copo na mão?
O seu andar esguio enfeitiça
como a flauta do encantador de najas.

Como conhecer a satisfação que ela tem
quando sorri viperinamente ao perceber
que meu olho é dela ali?

Mas o maior mistério é imaginar
o que esconde debaixo da saia
a mulher-serpente:
uma cauda sibilina de escamas brilhantes
ou
serão duas estreitas coxas (estreitas
como ela toda)onde em ataque
ela deixa escorrer ofídico veneno-antídoto?

E
daria um dia inteiro
- se qualquer dia fosse meu -
para ter suas presas cravadas
a carícia de sua língua bífida
pelas veias latejantes da minha geografia.

Tempos Hipermodernos


Anda-se dizendo por aí que
os computadores logo logo irão
roubar nossos empregos.
Eu acho que os primeiros a perdê-los
serão os coitados dos médiuns:

Outro dia
passando em frente ao
cemitério da Freguesia percebi
que havia na calçada em frente uma
placa que dizia:
A Internet já chegou ao seu condomínio!”

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Panorama de Afetos


Ela compra um sorvete na
noite fria de agosto.
Seus dedos
- longos e finos
como uma aranha albina -
despejam alguns trocados na
mão do cobrador do ônibus.
Ela corre entre as luzes das
lojas prestes a fecharem e isso
acende e apaga seguidamente sua
silhueta minguante.

E em outro ponto de ônibus ela
chora outra música que lhe alcança pelos
fones de ouvido:
as luzes da baía piscam mais lentamente
a Guanabara adormece e silencia
a noite quando cai cai docemente a seus pés:
tudo ante a lágrima serena humilhado.

COMO SER UM GRANDE ESCRITOR


(por CHARLES BUKOWSKI)


você tem que trepar com um grande número de mulheres
belas mulheres
e escrever uns poucos e decentes poemas de amor.

e não se preocupe com a idade
e/ou com os talentos frescos e recém-chegados.

apenas beba mais cerveja
mais e mais cerveja

e vá às corridas pelo menos uma vez por
semana

e vença
se possível.

aprender a vencer é difícil -
qualquer frouxo pode ser um bom perdedor.

e não se esqueça do Brahms
e do Bach e também da sua
cerveja.

não exagere no exercício.

durma até o meio-dia.

evite cartões de crédito
ou pagar qualquer conta
no prazo.

lembre-se que nenhum rabo no mundo
vale mais do que 50 pratas.
(em 1977).

e se você tem a capacidade de amar
ame primeiro a si mesmo
mas esteja sempre alerta para a possibilidade de uma
derrota total
mesmo que a razão para essa derrota
pareça certa ou errada -

um gosto precoce de morte não é necessariamente
uma coisa má.

fique longe de igrejas e bares e museus,
e como a aranha seja
paciente -
o tempo é a cruz de todos,
mais o
exílio
a derrota
a traição

todo este esgoto.

fique com a cerveja.

a cerveja é o sangue contínuo.

uma amante contínua.

arranje uma grande máquina de escrever
e assim como os passos que sobem e descem
do lado de fora de sua janela
bata na máquina
bata forte

faça disso um combate de pesos pesados

faça como o touro no momento do primeiro ataque

e lembre dos velhos cães
que brigavam tão bem:
Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.

se você pensa que eles ficaram loucos
em quartos apertados
assim como este em que agora você está

sem mulheres
sem comida
sem esperança

então você não está pronto.

beba mais cerveja.
há tempo.
e se não há
está tudo certo
também.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

MULHERES DE PASSAGEM


(por KOSTAS OURANIS)

Mulheres a quem vi por um instante
dentro de trens à hora em que partiam
para outro lugar, mulheres que riam
nos braços de um outro homem, exultantes;

mulheres em balcões, a olhar diante
de si (tão distraídas) o vazio,
ou a agitar do convés de um navio
que zarpava seus lenços vacilantes:

se soubésseis com quanta nostalgia
eu vos trago de novo ao pensamento
pelas tardes de chuva, tardes frias,

mulheres que passastes um momento
em minha vida - e agora conduzis
minha alma a um exótico país!

ErosAres


Não há armistício no meu
pensamento quando acordo na
cama amanhecida.
O desejo aponta todos os mísseis para
o meu corpo;
Tantos rostos nessa vida me declararam guerra:
cada um deles um país se embatendo pelo
meu peito-território.

Este corpo um mapa-múndi de carne e sangue onde
já se travaram dezenas de guerras mundiais que
não se resolvem.
Permanecem os escombros
vilarejos bombardeados
holocaustos...

E uma cidade inteira em mim
nunca mais se reerguerá do pó:
em meu centro em minha capital
resistirá um monumento em memória
àquela vaporosa noite de janeiro em que
silenciosamente
ela detonou a febril bomba H.

602


O apartamento está vazio.
Essa noite
- sem ela aqui –
o sono virá desacompanhado.
E eu sinto o quanto me completa a solidão.

Amigos essa noite não há
(a noite a muito não há)
desde que meu amor foi seqüestrado
amantes (se) partiram daqui.

O computador lança luzes nas
paredes madrugadas e a
televisão é um dispositivo anti-insônia:
filmes antigos
pregadores apocalípticos
televendas
pornografia...

São 3 da manhã e o
som dos motores não cessa através das
cortinas lavadas.
São 3 da manhã e o
mundo está em seu final.
Mas escrever esse poema é tentar
manter as últimas luzes acesas
é a última refeição no corredor da morte.

Imprecação Estética

Olhá-la no banco do ônibus
pintando as faces morenas me
fez rogar-lhe uma praga:
- Vai ser bonita assim na casa do caralho!

Alegoria da Caverna


Sou um passivo político convicto.
Não sou um a-político pois até pra
isso é necessário tomar uma posição.
Tenho mesmo é muita preguiça e
um amor incondicional pelo cinema.

Pegar em armas por uma revolução?
Jamais!
Ser um estudante de cara pintada gritando
palavras de ordem?
Não obrigado... prefiro a languidez do
sofá e algum Tarantino em tela grande.

Que o país pegue fogo!
Que tudo se afunde em merda
desde que a casa e a televisão fiquem intactas.
Fodam-se os desabrigados
as filas dos hospitais
as crianças e suas cabeças estouradas pelas
balas que se perdem.

Igualdade social e dignidade para todos?
Não são nada perto do que seria ter pra mim
- úmidos e brilhantes -
todos os lábios da Angelina Jolie.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Faster Pussycat! Kill! Kill!


Vez por outra
(contra todas as possibilidades)
nesse Rio de Janeiro tão grande
dentro de seu minúsculo tamanho
a gente se esbarra.

Penso que se a vida é aleatoriedade
se a vida é um jogo de cartas
ele anda viciado nela.

Acho que poderia ir visitar o Tibete
que ela estaria lá
com seus vestidos cuidadosamente comprados
para ressaltarem seus peitinhos terrivelmente redondos
seu quadril de mortal amplidão.
Ela estaria lá
com aquele seu sorriso infantil e criminoso
fazendo os monges todos voltarem as
costas para Buda.

E eu viajaria de volta com a febre de sempre...

Mas um dia desses
- assim como quem não quer nada –
eu vou matá-la.
Num dia bonito de sol
vagarosamente e calado
prazerosamente
eu vou matá-la.
Porque esse mundo ma chérie
já começa a ficar pequeno demais para nós dois.

Sublime de Minas Gerais


Se há paz nesse mundo
distante de tudo
ela poderia estar aqui nesta casa.
Olho a minha volta e tanto verde me
faz imaginar que em cada folha de mato
em cada árvore e inseto microscópico por
estas paragens infinitas
repousa a mesma vida que está em bilhões de homens.
Uma infinitude de seres nascendo e morrendo
se autodevorando e se autoregurgitando a
cada átimo de segundo.
A vida não é rara como dizem:
a vida é tanta coisa no mundo inteiro
que talvez ela não seja nem mesmo uma ilusão.

E eu aqui poeta
tão transbordado dessa vida nessas
estradas mineiras
só sei sentir solidão.
Embriagado de tanta vida que
vejo e me invade
não sei porque não é a alegria que existe:
diante desse algo maior que qualquer coisa e
que insoluvelmente nos escapa
tudo é um mistério que quer me abismar.

Paulo Eiró


No final de uma rua calada
há um guarda-roupa vazio no
centro da solidão
há gavetas fechadas que guardam o
cheiro das horas afogadas
há paredes que se diluem como
tinta na água.

Eram dias inumeráveis e que hoje
- dentro da indestrutível memória -
parecem todos um só.
Eram tardes de sábado na voracidade
do computador
as noites solitárias morrendo na
morte dos livros
as manhãs de domingo doloridas da
ressaca que antecede o vazio da
última tarde antes do dia “útil”.

Minha mãe e suas novelas infinitas
meu pai regando o quintal
a rua comprida que ao subirmos
num dia de sol
forma um horizonte inteiro de paralelepípedos.

Por mais que os dias se sucedam infalivelmente
por mais que os homens mudem de casas
alguns dias algumas casas jamais
deixam de nos habitar.

Aparição


Nas costas nuas de uma mulher
-que saía de um bar na Sete de Setembro-
na cor
na textura da sua pele (que eu
supunha pelo olho tátil)
eu vi a tatuagem que evoluía pela
linha da sua coluna
desde o cóccix até a nuca e
lacrimejei dali até a Rio Branco.

O estar no mundo daquela mulher
me doía agudamente
aquele bar (com um mosaico representando a Lapa)
as ruas sufocadas do Centro
me rasgavam de lado a lado na
certeza de que
- de tudo isso –
só restou pra mim
o silêncio na beleza do cinema.

domingo, 31 de julho de 2011

Oração

Na vida
só ficamos íntimos da queda.
E escrever
é fugaz tentativa de
acalmar o incessante desejo que os
abismos tem por nós.

Keats



Num rosto numa rua numa música num
poema numa antiga carta cheirando a madeira
eu me permito uma ou outra queda.
Meu coração é frágil como vidro
e caído ele se estilhaça com facilidade.

Mas
a beleza é uma alegria pra sempre
e em cacos meu coração é ainda
mais bonito:
só assim ele reflete inúmeras vezes
- ao invés de uma só -
aquele sorriso que não pude esquecer.

Teresópolis


Para F.M.

De manhã
diante da janela
escuto a solidão da árvores.
O canto da cigarra o assobiar dos
passarinhos me enchem de agonia
enquanto suponho que lá longe
bem longe
a cidade que estremece em
barulhos de motor e gritos
toca a única sinfonia que me acalma.

Sou um espécime (sub)urbano
e minha indiferença nesse jardim é
porque vejo menos o amor nestas orquídeas
- que você me mostra emocionada –
do que na fumaça de óleo diesel dos carros.

E eu sei
meu amor
que é aqui neste paraíso onde mora a sua alma
mas é na vertigem das ruas engarrafadas
que meu espírito busca o seu nome.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Enigma


Se existem esses espaços
-por mais ínfimos que sejam-
entre meu corpo e as coisas
quem os cria?

Totentanz


Mal saímos do ventre e já
começamos a envelhecer.
Crescer amadurecer:
de que serve se tudo diminui o tempo?

Os prédios ruem as árvores caem e
meu corpo deitado nessa cama
-dentro de uma manhã que se dissolve-
um dia também se desintegrará.
E todos os afetos e experiências
das mais ínfimas as mais grandiosas
deixarão de existir comigo
como se nunca tivessem havido.

E mesmo agora
eu tenho certeza que
alguma vida se perde na solidão enquanto a
incontáveis anos-luz daqui uma
galáxia inteira se extingue.

Enfer


Pelas ruas escuras há
cartazes iluminados com a
fotografia em preto-e-branco de uma
atriz segurando um cigarro.

Seus olhos
-os olhos na fotografia-
vêem todas as horas dessas ruas sem
no entanto
participar de nenhuma delas.

O cartaz é realmente bonito.
A atriz com seu cabelo Lulu
me lembra Louise Brooks
-ferida de tanta beleza-
destruindo a minha vida numa
madrugada muda em 1929.

sábado, 11 de junho de 2011

Romantismos


Esse sábado as ruas estão
apinhadas de casais e
eu nunca soube por que esses dias
me consternam.
A proximidade do Dia dos Namorados enche
a cidade de outdoors que ensinam que
o consumo é a derradeira prova de amor.

Mas nada disso realmente importa.

Estou comendo um pastel de queijo
bebendo um caldo de cana num
boteco embaixo da estação de Madureira
onde o gerente tem o nariz derretendo e
coça interminavelmente o saco e o atendente
vez em quando
levanta a blusa para esfregar uma
vermelhidão na barriga.
Mas é Madureira e o lanche ali é delicioso.
Uma adolescente se debruça no balcão ao
meu lado e suas clavículas ossudas quase rasgando
seus ombros é um espetáculo tão
terrivelmente belo quanto um quadro de Caravaggio.
Ela pede uma garrafa d’água (é claro que
ela não comeria nada ali) e eu
limpo a boca e saio.

Minha cara refletida nas janelas dos
carros é a cara de um velho alquebrado e
penso naquele antigo armazém onde
as paredes são teia e pó
onde se respira um ar centenário e
entre guloseimas e pães
a mercadoria mais barata é a memória.

Um casal de estudantes se beijando e se
agarrando pela nuca (percebo que ela usa
aparelho nos dentes) me mostra que nunca
fui assim tão jovem e que
a partir de agora me faltará alguma estrada e
que esta é uma vida plena de impedimentos para
quem só sabe viver no amor.

Ao chegar ao apartamento
ao deitar na cama para escrever esse poema
já não é mais preciso a densidade da noite e
nenhuma ave negra na minha janela para que
eu tenha o meu inelutável nevermore.

Nênia


Amanhece no corpo como
amanhece nas cortinas amareladas.
Tudo dentro já acorda conflito e
se vão ao longe as jovens auroras
as ruas da infância calada
o beijo do primeiro amor...

Vejo uma ladeira sufocada de árvores
nessa manhã fosca de frio metálico onde
as casas dormem enquanto as
pessoas descosem suas vidas nos pontos de ônibus.

Queria a manhã dessas casas
a carne dessas árvores resistindo ao concreto
queria o tempo da lesma o
tempo do caracol na sua monástica vontade de
não alcançar
do que ser esse homem que vive charfundando
na angústia dos horários.

Tudo se corrompe no escorrer
lodoso dos anos e
um dia não mais estarei aqui:
não perscrutarei mais essas rachaduras do muro
(que amanhã já serão diferentes)
não assistirei as novidades do cinema e
nem verei a praia carcomer Copacabana.
Quantas pessoas lindas vão nascer (como
tantas antes de mim) e não as terei ao
menos roçando de leve no meu olho.

Meu olho que um dia estará podre
afundado e murcho em minhas órbitas
e tudo que eu vi esses anos todos
tudo o que capturei
estará eternamente irrecuperável...

Tanto mundo
o mundo inteiro no meu olho
estará dissipado na nulidade do pó.

Walpurgisnacht


Acabei de engolir umas cervejas e
por isso
entre o cinema Odeon e o teatro Rival eu
dou uma mijada.
A hora é fria e o chuvisco fino
parece alegrar as pessoas.
A juventude moderninha se acotovelando
na Cinelândia me enche de
profunda tristeza:
me flagro aos vinte e nove um
velho careta e low profile.

O Municipal se ergue imponente na paisagem
enquanto se dilacera de lado a lado a
carne das minhas sensibilidades:
contemplo corpos que se vendem e
suas bundas cheirando a lycra das
calcinhas minúsculas.
Vejo passarem por mim
dentro da dor da chuva
essas pernas de porcelana que são escarradas
dos vestidos pretos da noite.

E mesmo ali ainda não sei o
que me haverá:
um sorriso
um rosto parecido com
um esvaziado 1984 televisivo.
Fascinado quererei apreendê-lo
mas não conseguirei.

Tudo esta noite é um interdito total entre
meu corpo e o existir das coisas no mundo.

Divagação Poético-Debordiana


Duas senhoras no ônibus conversam
maravilhadas sobre as bodas da realeza inglesa.
Esse é o assunto do momento em
todos os noticiários...
Mas
que tenho a ver com esse tal
casamento real
eu aqui nesse ônibus lotado:
preto pobre professor do terceiro mundo?

Onde podem me interessar conceitos
anacrônicos de nobreza
se aqui no nosso país
os presidentes nos deixam a pão e água?

Não tenho mesmo a ver com
todo esse espetáculo anglo-saxão se
aprendi que na vida
os melhores momentos são os pequenos
que estão no nosso dia-a-dia...
esses que nunca saem nos jornais.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

(Pre)Sentimentos


Virão.
Virão eles todos.
Por entre as ondas da Praia Grande
dos dejetos e das lixeiras eles
virão.
Das nossas noites exaustas (e sobretudo
das nossas noites exaustas)
das guerras santas na televisão
cavalgando suas antenas parabólicas
eles virão.
Dobrando as esquinas do sossego
por entres as mãos do malabarista
por entre as pernas da bailarina
eles logo logo virão.
Do frio deserto no Aterro noturno
dos beijos falsificados das oito horas
dos teus olhos vermelhos injetados de maconha
eles virão.
Do nosso sangue nos lençóis
da voluta cor de cobre dos teus cabelos
do filme antigo numa tarde de terça-feira
eles em breve estarão aqui.
Entre as páginas de uma revista pornográfica
entre as folhas de “Cem Anos de Solidão”
são eles que virão.
Das listras da blusa preta do poeta morto
do céu descortinado do Leme
no barulho do ventilador no quarto de dormir
eles com certeza irão chegar.
Em cada palavra engolida a seco
no bolo dominical da minha mãe
por entre os Arcos debaixo do bonde
sim!
Eles virão!
Das portas das casas dos parques dos
supermercados dos pontos de ônibus e
das bancas de jornal
eles sairão e farão dilúvio.
Essa é a verdade do mundo: eles
estão em todo lugar a espreita
se esgueirando de mansinho para nos tomar...
e tolo será aquele que
na face da Terra
tentar ficar ileso aos seus assaltos.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Sarah Bernhadt


Abro um livro de história da arte
e teus olhos que iluminaram toda
a fotografia de Nadar
lançam essa luz de sol que rasga
o escuro do quarto inteiro.

Olho pela janela e te imagino caminhando
por estas ruas cariocas como o
fazia pelas passagens parisienses:
com a sua altivez de dez mil musas.

E então eu me curvaria perante ti
-prostrado de tua beleza-
e escreveria um outro poema que
não este simplório:
um poema onde só tua visão viva poderia
como um raio
terrivelmente me atingir
(como fez a Mucha a Toulouse Lautrec
a Grasset a Clairin aos Nadar pai e filho).

E talvez fosse apenas mais uma dentre
cem obras que levam o teu nome...
Mas seria um poema tão sublimado
que se tu o quisesses mademoiselle Bernhadt
poderia repousar o fogo inquietos dos
teus cabelos (e assim infiltrar seus fios
vermelhos) entre as almofadas daqueles versos.

Das Pessoas e das Casas


Pessoas são como casas:
podem ser vazias ou
habitadas por dentro.
Sentimentos nos habitam como
famílias felizes ou infelizes.

Como há casas em escombros
já conheci pessoas demolidas.

Existem pessoas silenciosas
abandonadas de vida
pessoas antigas e cheias de
rachaduras no seu interior.
Essas são tristes até não poder mais...
essas são como as
casas abandonadas sob a chuva.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Estudos de Caso


Para que houvesse arte também
foi preciso Keats tossir sangue até a morte.
Também foi preciso Villon escorregar
para fora da forca
e Mahler levar chifres de Mondrian.
Foi preciso Bukowski comer todas aquelas
putas velhas com bundas de garotinha
e Van Gogh meter uma navalha em Gauguin
e Verlaine uma bala em Rimbaud (tudo é amor).
Foi preciso o assassino Caravaggio cair na
porrada por todos os bares da Itália
e Kerouac se encher de benzedrina nas
horas de solidão.
Foi preciso que o maior amor de Baudelaire
(depois da mãe) fosse Paris e
uma prostituta mulata chamada Jeanne Duval.
E para Schopenhauer um poodle chamado Maya.
E para o grande visionário Blake o
Deus mau que ele via pela janela (neste caso
pode ser ódio também).

É preciso desassossego e fúria para
que haja a arte.

É preciso todas essas
paixões embebidas em fogo e água.

De Dentro da Vida III


Um gato caminha no posto de
gasolina abandonado ao meio-dia.
Lento e indolente
alheio ao transito obsessivo e
a algazarra dos estudantes.
É só um gato de rua
só um gato...
Mas mais que qualquer um de nós
ele é o senhor do seu dia.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Sturm und Drang


Com seu gorrinho vermelho em
um café do Leblon ela
estudava Heidegger e ria.
Entre um gole e outro
entre uma página e outra
ela citava Levinás e ria.
E ria.
E ria.
Ria como a mulher do diabo.

Ela ria e suas esbranquiçadas
clavículas ossudas pareciam se
esforçar para não se partir enquanto os
alargadores nas suas orelhas reluziam o
sépia entardecer das seis da tarde.

Através dos poucos fios de cabelo
que escapavam do seu gorrinho
eu olhava além da vitrine a
vertigem dos automóveis e das pessoas
varando o final do dia útil e me perdia…
e com meu sentido de romântico
imaginávamos pertencendo a outro
mundo longe daquilo tudo:
onde eu era a sua Excalibur e ela a
minha azul Lady of the Lake.

Até que ela repentinamente guardou seu
livro na bolsa e sem dizer uma palavra
me puxou pela mão até a rua:
adivinhando meus pensamentos resolveu
naquela hora
que iríamos destruir o absurdo cotidiano.
Na calçada nos desvencilhamos do fardo
de sermos pessoas comuns:
eu me tornei o seu febril homem bala e
ela a minha magricela trapezista.
E nas portas das lojas
e nas janelas dos escritórios
e no sufoco dos ônibus engarrafados
todos acordaram pra nos ver:
pois juntos pelos céus da zona sul
voávamos perigosamente entre os prédios.

E todos que iam e vinham pelas ruas aplaudiram:
aquele era um momento de
supremo embate contra a mediocridade:
reconhecia-se ali dois poetas que
em meio ao entorpecimento da cidade
brincavam alegremente de não morrer.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Contemplação Mnemônica


É uma luz moribunda que se
derrama sobre as pastas dos velhos arquivos
enquanto ele se debruça na mesa entre
seus papéis e documentos.
Ele usa uns óculos redondos e tem
os cabelos meio brancos e nem
sente a inelutável noite acariciando sua nuca.
O silêncio do escritório é indestrutível
(menos talvez por um rádio onde as
músicas cheiram a passado).

No bairro os apartamentos se preparam
pra dormir enquanto ali
na imersão do trabalho noturno
ele nem nota que é hora de sonhar.
Eu reconheço no seu semblante que ele
pertence a essa raça de homens que
perdidos em suas (im)produtivas horas
nem percebe que é triste.

É noite de um abril em 2011 mas
naquela saleta parece-me que
aquele homem e seus arquivos
são manifestações de memórias longínquas.
Talvez ninguém mais os pudesse ver
se ali parasse na calçada e lançasse os
olhos através de sua janela como fiz:
são entes que ficam aprisionados num tempo-outro
e só quem os pode ver são os donos de um
olhar sensível as coisas que se perderam do seu devir.

domingo, 17 de abril de 2011

Carta Para Uma Menina Com Uma Flor

Sim eu sou triste.
Eu nunca neguei nem escondi de
ninguém essa figura patética.
E talvez você nem perceba que me
ama também por uma espécie de pena.
Porque você sabe que sozinho
eu posso me perder por qualquer coisa
eu posso morrer a toa.

É
eu admito
eu sou difícil.
Tenho defeitos que eu mesmo não
me toleraria se eu fosse um outro.
Nunca tinha atentado mas você
me mostrou que a memória é um deles
(talvez o maior)...
Mas como me apartar se as experiências
em mim se litografam?
Se as coisas que escoaram no tempo se
tornam um ingrediente indelével do que sou?

Não acredito nos seus deuses moça
você sabe:
sou um ateu um trágico um esteta e
acima de tudo
um amante do corpo.
E o corpo são cinco sentidos e
mais ou menos
meia dúzia de sentimentos errantes.
E aqui agora
na proximidade dos trinta
percebi que esse corpo é algo que se
desfaz rapidamente e que a
qualquer momento ele pode se aniquilar.
Por isso toda essa minha urgência que
você acha intolerável
toda essa minha sede de vida
toda essa paixão peregrina.

Por isso todos os poemas.

Quando em versos fúteis (vis vulgares sujos
de acordo com você) eu perpetuo
sensações que houveram
é uma tentativa vã de eternizar esse corpo:
meu poema não é pornografia moça:
meu poema é confronto com a morte.

Entendo que você não queira
conviver com isso e isso eu nunca te pedi
mas não pode esperar de mim o
asfixiamento (que faça parar no meu corpo
os pulmões dessa sede
o coração desses afetos).

A verdade
essa que nos recusamos a admitir
por causa de tanto amor
é que você não precisa desse egóico
desse bêbado
desse velho tarado
(talvez um daqueles cavaleiros virtuosos
do interior que você tanto admira).
E eu
que nunca acreditei mesmo na
possibilidade da felicidade
me bastaria voltar a ser aquele que
ainda que rodeado de amigos e amantes
era senhor das suas paisagens íntimas:
aquele que era livre pra abraçar sua melancolia
sem recriminações
que podia se entregar a solidão sem ser
considerado um traidor...

Não há vida possível quando uma
orquídea que só colore sob o sol
teima em tentar crescer nos pátios frios
dum inconsolável e antigo nosferatu.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

La Recherche Du Temps Perdu


Os rolos de filme da memória também
ficam antigos...
as imagens ganham riscos e saltos
os sons (quando há sons) têm
ruídos e estalos.
Isso seria um problema se
eu não fosse um romântico:
acho que até fica mais bonito
quando me lembro da estrela principal
chegando (em um plano americano)
pela Estrada Velha da Pavuna dentro de
um sanguíneo amanhecer em technicolor.