sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Poema Infantil


Quando eu tinha lá meus 10 anos
minha avó pegou um gigantesco búzio
da estante da sua sala e me
mandou pôr no ouvido dizendo:
“Ele tem dentro o barulho do mar!”

No princípio fiquei encantado.

Mas conforme ia ouvindo aquilo
na minha já presente melancolia infantil
comecei a pensar naquele búzio
perdido pela imensidão azul do oceano
e comparando com a prateleira empoeirada
onde ele morava agora
respondi tristemente:
“Não vó
o que ele tem dentro dele
é só a voz de uma saudade...”

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O primeiro raio fende o horizonte dos faróis e a brisa que passa em fatias pela fresta do vidro do carro traz um hálito de folhas secas, sussurra a promessa de uma madrugada de chumbo. A escuridão engole o topo dos postes, o alto dos prédios, e tudo é velocidade na noite do Centro, tudo é risco de luz nas onze horas da Zona Sul. No entorpecimento de uma estranha sonolência, todas as coisas me chegam fugidias, todas elas girando através das sensações dissimuladas do desejo... e nada do que existe além da janela me esquece, nada dessas horas saturninas pode me encontrar em mim mesmo, pois tenho meus olhos vigiando cada esquina, cada faixa de pedestre, cada menina do Flamengo, e vendo ali desabrocharem as flores levemente azuladas da melancolia.
A cidade inteira arde em néons psicotrópicos, enquanto o corpo da noite retém em mim um cheiro de chuva. No rádio, a força na voz da Gal ergue o peso da hora que se arrasta, enquanto tudo fala sobre você e não me desmente, tudo me adivinha e anuncia que já sobre o colchão, entre um sono e outro, eu vou te arquitetar em pensamentos que me escorrerão pelas pálpebras, que me escaparão entre as mãos.
Diluída na noite das minhas saudades você é a própria noite, e o silêncio é um último respiro antes do mau tempo se abater gritando sobre as avenidas desertas, e transbordá-las da água e da densidade da sua ausência.
Mas me enganei... a chuva cai, e vem trazendo alívio no seu som...
E é tão bom porque, esse alívio, não sei se outra coisa, nem mesmo você, a essa hora me traria...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Acalento de Chac


“Estamos vivendo e o que disserem:
Os nossos dias serão para sempre”
-Renato Russo

A vida pára num domingo de
chuva em Guaratiba.
O telhado faz cascata
e as gotas nas folhas e as
gotas nas calçadas cantam
enquanto lavam a paisagem cinzenta.

Enquanto o mundo se liquefaz lá fora
eu a pororoquinha abraçados aqui na janela
ou nesse colchão no chão
sem nada para fazer
além de simplesmente sermos nós dois...
o mundo se reduz a essa sala onde
o movimento quase não quer existir
onde as horas quase se esquecem
que devem passar:
tudo é pequeno gesto que acalma
tudo quer morar no tamanho das mãos dela.

E o que me importa que um dia eu morra?

Só valeria a pena viver p’ra sempre
se assim fossem todos os dias:
eu
ela
e essa janela aqui dando para
o aconchego de um domingo de chuva.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Quando
através do espelho
o olho dela pousa no meu olho
eu lembro que a palavra mistério
vem do grego mysterion
que significa algo indizível ou
incompreensível
que significa um segredo revelado
por um deus.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Formigas Pretas


Há alguns dias que minha cozinha é
assolada por uma infestação de
formigas pretas.
Mas hoje pela manhã
-antes de ir trabalhar-
meu pai jogou inseticida
matando elas todas.

Quando acordei me deparei com
milhares de formiguinhas mortas
incontáveis pontinhos negros
cobrindo diversos cantos da cozinha.
Com uma certa indiferença coloquei
açúcar no leite
manteiga no pão
e me sentei para tomar o café da manhã.

Pensei nas pessoas que vem me dizer
que nós somos regidos por um
deus de amor...
pura balela!
Se essa tal divindade existe
-o que duvido muito-
ele é insensível como eu esta manhã:
ele deve estar com certeza lá
com sua costumeira indiferença
tomando seu café divino e
olhando de cima para os cem mil corpos
dos pretos que apodrecem depois do terremoto
que ele lançou no Haiti.

Pense no Haiti, reze pelo Haiti.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Nas ruelas do Centro os
prédios condenados vertem
nostalgia pelas suas rachaduras
e mesmo essa hora da noite ainda penso
na primeira claridade da manhã:
imagino lá dentro os fachos de
luz do sol brotando pelas frestas
raios de luz empoeirados fatiando o
o ar denso das salas abandonadas.

Pego o ônibus e a essa hora só o
Cine Íris ainda vende seus serviços e
os dois travestis sentados atrás de mim
me fazem achar que todos os travestis
usam o mesmo perfume.

A sirene da viatura
enquanto passa
(e até ela o faz em silêncio)
empresta por um instante o seu
vermelho fluorescente a ausência de
cor dos apartamentos velhos.

A menininha na janela de madeira
desgastada lança os olhos em meio aos
carros que seguem para o Rio Comprido
enquanto nos bares alguns velhos boêmios
resistem a mais a cachaça que a vida.

Tudo é assim meio triste quando
nada parece serenar ante os meus olhos
(tudo eu vejo atravessar a corte a carne da noite)
e o temporal que se aproxima e que na
madrugada vai deixar tudo límpido e silencioso
pode fazer de cada pingo a testemunha
de que o mundo existe melhor na ausência dos homens.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Reveillon


Nada aqui diz o fim do ano
nem o néon e os pisca-piscas
nas poças de temporal
nem esta melancolia natalina
essa nostalgia da neve que nunca vi.

Mas me demove a presença sublimada
(e o sorriso que recebo)
da amiga de uma amiga
e o olhar do vira-lata perdido na
chuva me pedindo que o leve...

Entretanto nem isso me desvela:
só o clarão de raio no escuro da
cama me impõe a duplicidade de
me saber um só corpo e no entanto ter
sido sempre eu e você ao mesmo tempo
pesando sobre o colchão.

Vontade mesmo de um lugar longe
de qualquer de festejo
(a impossibilidade de uma praia de silêncio):
porque sei que os fogos rosáceos se expandindo
silenciosos contra o fundo escuro da noite
parecerão todos flores desabrochando
(rasgando)
a negra superfície da minha pele.