sábado, 26 de janeiro de 2013

músicas para ouvir antes de morrer


faz anos que não a vejo e
hoje você já é uma mulher e que
ama outra mulher e que num
jantar você quer que eu conheça

por isso faço a barba jogo
um perfume pelo corpo faço
umas flexões de braço pois eu
quero que você veja o quanto
estou mais bonito e cruel

nos encontramos no mam e
dali vamos pro seu charmoso
apartamento no catete e vejo que
sua namorada é bem bacana:
conversamos sobre tarantino e
spice girls enquanto te vejo aquela
garotinha de novo quando insiste em
me mostrar os grafites do banksy

evaporo uma garrafa de vinho e
discutimos sobre a cidade partida
mas
logo depois tenho de ir embora
correndo porque daqui a pouco
o último metrô vai passar
na estação da glória

canibalismo a flor da pele


quando era criança tentei
ser criança e não consegui

já fui budista já amaldiçoei
deus nas chineladas da minha mãe
e hoje
nenhuma verdade me diz

já aceitei propinas
já fui sujo muitas vezes (inclusive
com um amor verdadeiro)
e na hora da porrada eu pedi arrego

tenho um lado jonh fante e
outro lado playstation e aprendi
a vigiar o tempo escorrendo pela janela

acho rambo mais bacana que rimbaud

e
ultimamente ando intolerante a
vida e sinto que posso por tudo
a perder: amizades amores a
própria noção dos dias

olha
eu não queria dizer mas
já cogitei sinceramente o suicídio:

só que aí eu pensei nos grandes
lançamentos do cinema e eu
pensei em todas as bundas
que ainda não conheci
e desisti

l’avventura


quando no próximo ano
você ali não mais
estiver pequena poeta
eu sei:

vestígios do seu rosto ainda
permanecerão nas diagonais do
refeitório barulhento
teus olhos verdes (assustados e
impiedosos) ainda ecoarão
através das ruas soluçantes do
jardim botânico e seu cheiro de
tigre acuado continuará caindo na
chuva ácida que desintegra os
verdes escuros do parque lage
que desintegra a opacidade do
redentor (derretendo aqueles finais
de tarde de sombra e preguiça)

e talvez essa membrana invisível
da incomunicabilidade que
nos impede de cingirmos um
ao outro se torne um muro
concreto entre dois campos minados e
não haverá telefonemas ou redes
sociais que mitigarão isso:

pois entre nós
nem mais as palavras embrulhadas
em arame farpado haverão

não mais rodin e claudel não
mais batman e capitão américa: os
dias sem sabermos um do outro serão
uma outra espécie de brutalidade
uma outra espécie de flor

e
como convém ao tempo que tudo acabe
nunca mais ser tão jovem como você
e você tão antiga quanto eu
nunca mais trocar versos faíscas
e medos às 11 da noite

nunca
nunca mais os espelhos das camas pálidas
e sobretudo o fim:

o sol vermelho lento da barra da
tijuca ou a ameaça de tempestade
no jardim botânico nos mandando
diluídos de volta pra casa

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

o anjo azul


não
não sou aquele professor velho e
careta não sou barrigudo e
afetado  como emil jannings
no blaue engel e nem estou
fadado a decadência apesar do
que ando dizendo por aí

mas

ante a visão de tuas ancas
marlene dietrich do largo do machado
eu me flagro um assíduo careta um
insistente velho fraco que
na noite absurdamente quente do
teu camarim (incenso shiva elefantes
sagrados) dançou contigo uma
dança da morte e sobreviveu ainda
que mutilado de uma parte que
já não consigo mais decifrar qual é

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

astrofísica


no vórtice da madrugada
um silêncio sugando tudo
pro centro: um
buraco negro de mim

om mani padme hum (oração a uma moça de circo)


para paula guglielmi

cruzar
de uma zona a outra
a cidade a noite sob a
chuva em busca do amor
(é tão difícil o amor na
cidade) e te esperar
num bar meio vazio a
cerveja no fim quando você chega
ligeira e atrasada me reconhecendo
na mesa do canto como
convém aos solitários e/ou aos tímidos
fazendo eu me saber um careta
com seu estilo subjugando o meu

com o cigarro eterno entre os dedos
os dreadlocks recendendo a cannabis
você senta e faz o assunto orbitar
em torno do desapego e dos ciúmes
versando com a imponência de uma
pitonisa que me obriga a decifrar
profecias sobre a rijeza do coração

e me desnorteia ver você inverter
a mesa e me fazer perder de lavada o
meu jogo preferido: o colecionismo
de amores (mas você é mulher e
você é bonita como só é
bonito aquele único poste aceso
em uma ladeira do estácio: nesse
jogo você sempre vai estar
milhas a minha frente) mas eu
engulo o orgulho junto a cerveja
engulo teus olhos teus dentes a
tua argolinha no nariz quase
me fere a garganta
engulo tudo porque eu preciso
te beijar sob o ozônio como
quem quebra um tratado de paz
como quem declara guerra a
um país belicamente superior

é um processo adivinhatório
tatear teu corpo estreito e
de olhos fechados achar tua
cintura e correr o mundo inteiro
na cartografia dos teus braços
incrivelmente frágeis

e teu quarto pequeno chega
a porta de correr a comida
macrobiótica que devoro só porque
estou com fome enquanto
você desintegra seu baseado
distraída com o keanu reeves na
tv não me percebendo entoando os
mantras da tua perna com a
serenidade de um rinpoche

e te ter como uma epifania como
se sua substância fosse um
vapor escapando entre as mãos
um êxtase que vai se acabar pra
sempre sem nunca ter havido
e dormir e não dormir olhando
tuas formas cansadas que no escuro
soam ainda mais perfeitamente
magras e intocáveis e virada de
lado me impede a invenção
de qualquer carinho

quando amanhece
te vejo ainda uma última vez
nua e absoluta e desvendo no
compasso da sua respiração que
essa noite foi a revelação de
algum bonito mistério da vida (e
me fazendo arrepender dos
dias em que desejei morrer)

mas abandono sorrateiro teu prédio e
teu sono e a claridade lenta do catete o
ócio do aterro expõem minha pele
ainda viva (troquei de pele
por não caber mais na antiga) e
ainda teu cheiro na ponta dos
dedos ainda teu hálito no meu
hálito correndo pelas persianas
que divisam e dividem a lagoa

o dia passa no limbo do semissono e
a noite chove a mesma chuva da
noite anterior me fazendo querer te
saber onde agora sob a torrente
em que a-braços estranhos praticando
sua liberdade anunciada que parece
mais um desafeto que uma elevação
deixando esse incômodo esse
grito no meu peito que é um
grande risco que corro e que
a essa altura do campeonato
pode ser tão mortalmente potente
como um tiro no céu da boca

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

aracnokafka


quando
certa manhã
o poeta kavita kavita acordou
de sonhos intranquilos
estava metamorfoseado em
uma gigantesca aranha cabeluda

mas ele tinha aracnofobia e
quando olhou pra si teve
um piripaque de tanto pavor

morreu de medo de si
mesmo (encolhendo as
oito patas negras como
uma rosa murchando) e
impossibilitando assim o
pastiche aracnídeo da
clássica narrativa

aracnofobia


quando abri o armário
de materiais dei de cara
com uma ameaçadora
aranha marrom

eu olhei pra ela
ela olhou pra mim (seus
oito olhos de prata ainda
estão aqui) e o que se
seguiu foi inevitável:

ela correu pra um lado
eu corri para o outro

l’age d’or


sou todo feito de cacos tímidos:
só quem vem quietinho
poderá tentar recolhê-los
e é preciso ser um solitário
para o silencioso trabalho de
juntar suas desconexões

mas
ninguém até hoje conseguiu:
apenas aprenderam a dor
de sangrar as mãos sozinhos

paisagem onírica


há dias em que
tudo me distrai mas
há aqueles dias em que
a saudade vem em ondas lentas
e frias quebrando nas
margens noturnas do peito

o farol:
na claridade posso ver
sumindo no infinito da
praia sem estrelas as
pegadas de quem seguiu
pra outros litorais

réveillon II


essas coisas de flores de
estrada de serra de
água salgada não tem
nada a ver com esse viver
estanque entre dois abismos
cheios de fogo e gelo
entre duas calçadas cheias
de casas interditas

mas alguns dias nos
convidam a sonhar e são
esses os dias que nos
salvam e nos mantém
firmes para mais uma
temporada no inferno

réveillon


o fim de ano chega e
escoa mais uma vez e
são/serão tão poucos
anos os destes nossos
corpos que se chocam e se
esfacelam nos ventos íngremes
e marítimos dos sonolentos
apartamentos acesos

mais tarde haverá fogos de
artifício (sempre há artifícios) e
abaixo do seu desabrochar
luminoso residirão
- e ninguém saberá –
coisas que murcham e que
se voltam pra si mesmo num
lento movimento pra dentro