quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Melancorgia


Eu sou um corpo.
Olho minhas mãos escuras
magras
que reafirmam:
eu sou um corpo.
Estas mãos que escrevem para
expurgar todos os pesos
para tornar mais leve o tempo
(está no meu corpo o poema?
É uma extensão do meu corpo o verso?).
Estas mãos que
presas aos braços
são como o resto todo:
sangue e osso e carne e pêlo e desejo
que um dia não serão nada além
do que pó (mas que voltará a residir
na constituição de outros seres).

Mas se me olho inteiro pela manhã
eu me pergunto:
é só isso o corpo?
Onde ele pode estar circunscrito agora
além de aqui nos
limites desse banheiro?
No reflexo desse espelho?

Concluo que ele é um ente que
vê e sente
e a tudo captura
e a tudo mescla e
se dá
vivendo nessa orgia dos sentidos
se prostituindo pelas coisas do mundo.
E tudo isso que vai ficando retido
vai semeando melancolias
(e a melancolia?
Ela cabe no corpo ou
o corpo é que lhe cabe?).

Talvez seja correto afirmar
que meu corpo também é
só uma aparência no mundo
mas que é um fenômeno onde
se guardam incontáveis afetos
(o orgasmo noturno
o mau humor matinal).

É que este corpo aqui
também é uma casa onde
mora uma família inteira de silêncios
é onde em atos se concretizam as vontades
(ou onde as escondo...)

Este corpo aqui é um lugar de
trespassamento constante
um lugar ora lúcido ora obscuro
frágil
muitas vezes triste
mas é por onde o mistério da vida
atravessa infinitamente.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Escrita do Deus (ou pequeno satori)


Enquanto encaro a folha em
branco (e minha cabeça às
voltas com o aluguel que
não tenho como pagar) escuto
os vizinhos trepando no andar
de baixo.
Concentro-me como num koan e
penso que se existe algum mistério
no universo a ser solucionado ele
deve estar inscrito no padrão dos
gemidos de gozo da minha vizinha.

E quando saio pra rua a
vitrine da loja de souvenires é
uma espécie de delírio:
na prateleira de baixo
num copo de vidro
Batman me cerra os dentes (mas
qual Pessoa desvio meus olhos para
fora da possibilidade do soco).
Na prateleira de cima
Shiva Nataraja na sua dança cármica
pisoteia as cabeças de demônios hindus
todos eles com as caras de ex-namoradas.

E assim ele se iluminou.

Dialética Suburbana


“Por que será que toda
loira gostosa (e que sabe que
é gostosa) usa piercing
no nariz?”
Com essa hipótese se iniciou a
nossa filosofia de bar.
“E não se esqueça das tatuagens
em lugares estratégicos!”
Ele complementou.

Enquanto discutíamos a
padronização estética das loiras gostosas
um amontoado de crianças pretas
(todas lindas como eu era quando pequeno)
passou correndo para fazer a
maior algazarra no portão da esquina:
era dia de São Cosme e São Damião.

Tristeza em Concreto


Estes casarões do Campinho
antigos
velhos
sem portas ou janelas
(lá dentro um quarto azul
um guarda-roupa
um ventilador de teto)
são (des)construções no corpo
pesado da noite suburbana.

E depois dos corredores de
escuridão absoluta
através de escadarias destruídas
penso na vida que se perpetua
nas pessoas pobres como baratas em
escombros
(como nas ruas bombardeadas de Cabul).
Penso nas crianças ali dentro
que querem estar felizes
mesmo no âmago desse casario à
beira da avenida
de dentro das entranhas dessas
tristezas de tijolo e cimento.