sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Fim de Agosto



A chuva fraca pontilha
as superfícies da cidade
(vidro concreto aço)
enquanto volto pra casa
digladiando o frio afiado
reinando sobre os espaços de
noite absoluta do cais do porto:
eu sou uma solidão existindo
entre os carros.

Madeleine



Ela tem cara de casarão.

Desses de escada que range sob
a luz fraca afogada pelo
cheiro de mofo e madeira.

Ela se veste como uma tipografia
art-noveau de aço sobre uma portaria
com grade sanfonada.

Seus cabelos parecem roupas
no varal de um dia num pátio
úmido depois da noite de chuva.

Ela tem corpo de quarto quando amanhece
a primeira luz batendo
recendendo a colônia dos móveis coloniais.

Ela é linda.
Ela tem cara de casarão.

E cada gesto dela é repleto de memória.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Projeto Hitlerista Para Extinção da Arte Moderna



Rótulos de destilados em
prateleiras de bares sujos são
uma coisa bonita.
Outra coisa bonita são
normalistas com seus cabelos
molhados na poeira das
6 horas da manhã.

Come Undone tocando no meio
da madrugada chuvosa é
uma coisa lindíssima.
Mas cruzar a noite chuvosa entre
faróis lacrimejantes da Barata Ribeiro é
mais lindo ainda.

As ruas desertas do Centro em
dia feriado são de uma beleza insuportável.
Como também é terrivelmente bonito um
poeta anoitecendo as horas e as
palavras em seu quarto.

Chegam a doer de tão belas as
atendentes chinesas das pastelerias no
meio do dia tórrido.
E ferem de tão belas as fotografias
dos amigos (todos jovens)
afogados no azul dos verões irresponsáveis.

Uma coisa serenamente bonita é
escrever um poema na
Rua do Lavradio embriagada.
E uma coisa violentamente bonita são
os transex sorvendo as luzes
artificiais e frias na Rua da Glória.

Ou ainda a respiração de um cão
dormindo enrolado.
Ou ainda o piso rachado da casa da
avó falecida reverberando pelas
pinturas da memória.

Ou ainda derradeiramente te olhar
pintando os cílios de frente pro espelho
imersa na iluminação vinho desse
quarto de hotel.

Manifesto Surrealista de 1924



Ou
teu corpo fino à contraluz
abrindo as janelas de
madeira e delineando sua silhueta o
sol que banha as pedras portuguesas o
casario os trilhos do bonde os
liquens após a noite de chuva em
Santa Teresa

ou
tua cara de sono a camisola de
seda cinza num apartamento de
Copacabana sob a luz alaranjada dos
abajures que cinge os cristais o tictac do
relógio de corda europeu enquanto um
ou outro motor morde a madrugada na
Siqueira Campos

ou
talvez tudo isso seja apenas um
sutil devaneio num banco de
espera do metrô da Linha Um.

Gotham City



As luzes são diamantes vivos que
carbonizam e morrem frias no
asfalto enquanto o copo de conhaque
ajuda a mesa do canto mais escuro a
entrincheirar esses olhos que se
perfuram de desejo e desesperança.

Mendigos cortando os pelos do
nariz sob o viaduto reformado enquanto
bombas e anjos despencam sobre os prédios.
Desde o doce crime ando assim
pelos cantos mais escuros
ensimesmado
com medo de ser pego.

Cães pernetas ladram enquanto carros
desrespeitam os sinais vermelhos:
não é mais amor o que carrego
dentre os abismos da cidade:
cada uma dessas mulheres aqui é
uma amostra efêmera da
pesquisa científica que me consome.