quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Em Todas as Coisas


Focalizo a janela do ônibus espelhando nossos rostos translúcidos,
e ao flagrá-la me sorrindo através do reflexo,
diante de mim a vejo ir sobrepondo seu rosto
na paisagem que corre por trás:
então os carros e os faróis me encaram com seus olhos,
a calçada e as portas das lojas me sorriem com seus lábios...
enxergar todas as coisas que ficam e que passam assim,
cristalizadas pelas feições dela,
é torná-la absoluta,
é reafirmar esse sentimento que,
desde que ela apareceu por aqui,
a coroou de onipresença nos instantes do meu dia.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Um Lugar



No sofá da varanda,
enquanto ela me aponta a árvore morta
que foi sombra durante sua infância,
eu, com minha vista de míope,
pensei que o brilho no olho em seu rosto de perfil
fosse uma única estrela esquecida no céu
depois que a chuva passou.

Devir Congelado


Menina do casaco rosa na garagem desbotada,
tecido tão rosa que a tinge inteira na pele do dia monocor,
leio sua impaciência nas ondas da sua testa,
sinto o frio que seus braços cruzados não podem impedir...
Por quem espera encolhida, encostada,
com esse seu semblante carregado?
Seus olhos lançados entre os vãos dos carros,
vão mais rápidos que eles sem te tirar do lugar.
Meu ônibus segue e te esquece pra trás,
mas te gravei nessa imagem fixada de espera,
então, nesse meu mundo que continua sendo,
não haverá devir para você:
em mim ficará ali eternamente esperando e esperando...
esperando que eu,
que você vai morrer sem conhecer,
apareça e lhe entregue um poema sobre você:
versos que falam de você esperando os versos de você esperando...
coisas que falam de você aguardando o que não sabe que foi feito,
ansiosa por palavras que você vai morrer sem saber que foram escritas.

sábado, 18 de outubro de 2008

Luna


“Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.”
-Alphonsus de Guimarães, Ismália


Espelho solar...
Lua etérea de halo ferrugem,
lua da minha infância nos quintais de minha avó.
Luz azulada das minhas nostalgias
dos portões do paraíso nordestino,
cor do sublime assombro dos oratórios barrocos.
Vigia da madrugada embriagada,
das ruas sonolentas e das esquinas indizíveis.
Círculo perfeito que não se vê com a janela fechada,
beleza que entre os lençóis molhados dos varais
minha metade me aponta.
Lua do quadrado luminoso no centro do quarto,
bola de cristal onde os poetas vaticinam o futuro.
Holofote do palco onde o espetáculo
só acontece atrás das cortinas,
farol que guia os lobos,
que revira sentimentos em amantes e licantropos.
Luminária redonda no teto do mundo,
bola de gude rolando no veludo escuro.
Rosácea da fachada celeste,
vitral rosa-bebê remexendo as marés.
Olho chorando prata nos lugares
por onde pára o meu amor,
lua vermelha que entre as frestas da cozinha anoitecida
traz de volta a paz do sorriso da Fernanda.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sóror Cheia de Alegria


“Eu quero esse corpo que a plebe deseja
Embora ele seja prenúncio do mal”
-Nelson Gonçalves


Encontrá-la tão bonita e tão volúvel,
me faz pensar em roleta russa,
no mergulho no centro do recife de coral.
É um perigo toda essa proximidade,
o risco de se dobrar ao seu jeito,
tão perfeita que parece uma idéia de dor,
tão puta que parece que já nasceu assim.
E nada permite o distanciamento dessa mulher sem apego,
grandiosa ave de rapina, falcão, condor e águia americana,
me circundando com seus vôos de caça e telefonemas,
que me expõem as garras dos seus artifícios,
me fazendo presa, coelho e camundongo,
atraído pelo ressecado do vermelho da sua boca exposta,
calculando a impossibilidade de prendê-la nessa minha gaiola
que sempre foi apenas de madeira.

Ela é flor que só se tem à beira do abismo,
tão anjo e tão rata,
tão inteligente e tão junkie,
cicuta com gosto de Coca-Cola.
E mesmo assim eu vou querendo e temendo,
e proporcional ao medo,
vem o desejo do seu corpo rabiscado,
vem o encantamento pela loucura da sua cabeça,
maior o querer de encontrá-la de novo,
me esperando em frente as luzes do chafariz,
chapada de cerveja, cachaça e de sei lá mais o quê,
chorando e me ferindo, agressiva e doce,
enquanto eu, encolhido do lado,
vou abrindo meus poros a unha de tanta ânsia e indecisão!

As luzes das lojas se apagando uma a uma,
o limbo das vitrines escuras refletindo as costas dos quadris dela,
vão me baqueando no receio de colhê-la
e me enchendo do pavor de depois,
como é tão próprio a mim,
não conseguir saber deixá-la definhar...

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Percepção de Tempo


Todo dia no monitor são cinco e doze...
Garoa, depois sol,
o vidro do ônibus escorrendo no meu ombro.
E na porta da antiga casa, à beira da avenida anoitecida,
uma velha senhora, dessas que não se fabrica mais a cidade grande.
Seu vestido démodé,
seus olhos vazios vidrados na velocidade de um mundo que não mais lhe pertence.
De mão dada a sua, uma menininha,
sua neta talvez,
mas com olhos diferentes, olhos recentes.
Não é a mesma paisagem para as duas portanto.
E trago comigo um pouco da velha e da menina,
metade antigo, metade contemporâneo,
um só ser vinculado a dois tempos diferentes ao mesmo tempo,
bipartido em dor temporal de não conseguir viver em nenhum.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Quatro de Setembro (ou minha Ceres)


Em carne e osso se tornou a filha da estação,
do sonho se fez existir na realidade do vida,
p’ra espalhar nos lugares tristes o seu frescor de primavera.
Eu a olho e meu olho vê as cores de um vitral vivo,
o suave de cada gesto fluindo pelas ruas,
vivificando as paisagens urbanas de setembro,
derramando seus jardins pelos espaços descoloridos da cidade.
Eu a olho e meu olho a vê caminhando de leve por entre as flores,
o seu sorriso flutuando aberto entre os arranjos,
seguindo lento,
e desabrochando as orquídeas que explodem seus tons,
como se seus lábios fossem as pétalas da flor primeira,
a mãe da natureza,
aquela que anuncia as outras
que é chegada a hora de florescer uma vez mais.
E a partir de então,
todas as frestas do dia pulsam devagarzinho
respirando fortemente a ela,
e se hoje isso aqui anda estranhamente mais bonito,
é porque ela assim o quis...
é porque ao pôr os pés aqui,
ela deixou um pouquinho da sua beleza
guardada em tudo o que há de mais admirável no mundo.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Setembro Despetalado


Depois dela haverá possibilidade
de se crer na perenidade do amor?
É certo que não.
Pois agora a minha herança são essas músicas,
que preenchem de forma imperfeita os vãos onde me encolho.
Pétala por pétala, cada hora triste se destaca da flor do dia,
e plana devargazinho até cair ao chão.
E murcha.
Todas as coisas junto.
A primavera veste a pele de um novo inverno,
esse será um ano de dois invernos...
porque, e sobretudo porque,
meu espelho só reflete uma metade agora,
no colchão, a fração que eu sou rola sozinha,
sem cheiro, sem calor, sem cabelos,
pra me abrigar da solidão que nos vem quando é chegada a hora de dormir.
Se ao menos o que se viveu junto não se desmanchasse facilmente,
e pudesse pesar na hora da decisão dela partir,
se ao menos a saudade que ela diz se dona não fosse tão diluída,
fosse de um tamanho suficiente pra fazer ela querer um pouco mais a mim...
mas só o que se descortina é algo incompreensível:
é uma metade querendo ficar distante da que lhe completa,
e essa metade que aqui ficou,
de lá p’ra cá no mundo novamente,
em dias vazios, dias sem espera,
esperando encontrar o sorriso da outra parte
em qualquer banco de ônibus sobre a Guanabara,
ou numa sala de cinema antiga do Centro,
ou ainda brotando de um leito de orquídeas
sob o sol tépido de uma feliz manhã de sábado...

Dendrobium Nobile


A primeira vez que nos vimos foi como se fosse um estranho reencontro, foi como se em cada segundo da aparição dela eu achasse, e achasse, e achasse infinitamente, o que andava por aí procurando sem saber mesmo o que era. E, naquele instante, foi como se se instaurasse um bonito paradoxo, onde tudo ganhava e perdia sentido, era como se o encantamento que exalava dela se impregnasse nas coisas, seguisse seus rastros, e habitasse por todo o tempo o lugar onde ela resolvesse ficar. Enxergava que, cada um a seu modo, éramos parecidos, e na igualdade tive certezas de felicidade, derramei pelos caminhos onde passei meus melhores sorrisos, senti que naquela diferença desse mundo vão que ela demonstrou ter, eu pudesse conhecer tudo o que poderia desejar até o fim. Ouvia as músicas irradiarem uma limpidez diferente, ganharem um sentido mais claro e todo novo.
Eu pude contemplar, com aqueles risonhos olhos de criança que ela havia me emprestado, o inverno se prostrar aos seus pés, eu a vi vindo semeando as cores: o azul, o amarelo, e o verde, eu vi a primavera adentrar mais cedo pelos campos sempre anoitecidos dos meus setembros.
Ela me levou até as orquídeas, com ela conheci as orquídeas e seus nomes, e enquanto ela me mostrava suas preferidas, eu a admirava caminhando tão menina, tão leve, cabelos ao vento, folhas ao chão, que só não a confundia com uma delas, porque ela me parecia ainda mais delicada, ainda mais perfume, ainda mais pétala.
Ficou retido a mim, como fotografia inscrita na memória, o espelho onde morei. Aquele espelho onde eu a via me vendo, o mesmo espelho onde no reflexo do reflexo dos seus olhos, abraçado a ela, eu me via refletido muito mais bonito... e falávamos de contrastes, e falávamos de opostos e do yin e do yang, e eu no entanto, só pensava que nos nossos corpos unidos, morava o dia reunido à noite, como se naqueles pequenos e imensos mundos que criávamos, eles pudessem existir ao mesmo tempo, ser uma coisa só.
E fiz vinte e sete junto a ela, e hoje posso dizer, que pelo menos por um único dia, eu consegui todo bem que poderia querer na vida: por um único dia, por algumas poucas horas, eu pude realmente envelhecer ao lado dela.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Um Último Respiro


Nem posso lembrar da última vez que choveu assim,
com tanta fúria, com tanta paixão.
No flash dos relâmpagos vejo a imagem dela se fixar
na superfície da chuva,
o som do trovão é o estrondo que faz a imagem dela
ao se inscrever por um átimo de segundo na carne da noite.
Sempre lembrarei dela nos dias frios,
na pele dela fria,
naquele algo glacial que não sabia explicar nela.
E o frio que nasceu de repente aviva a lembrança
de que essa semana esbarrei com ela...
De quando eu a vi atravessando a rua,
rápida e desatenta como é de seu costume,
magrinha, mas com sua presença imensa
perceptível em todas as coisas da rua,
uma cor clara, uma outra luz,
fluindo entre os faróis e os postes da noite suburbana.
Esperei os poucos segundos que nos separavam,
como quem espera dormente nas horas:
-Louise?
-Oi, tudo bem?

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Orquidário de Setembro


Não pude dormir na angústia de sentir o perfume expelido do sobe e desce respiratório das suas costas nuas, repousando a um palmo de distância do meu peito. A madrugada correu insípida enquanto eu ansiava que você se virasse sobre o colchão, me olhasse mais uma vez daquele seu jeito, e me abraçasse até chegar a hora de ir trabalhar. Mas pela manhã o relógio tocou, você vestiu a camisola caída atrás da cama, e sem sequer olhar pra mim, me pediu desculpas enquanto ia sonolenta pra cozinha. Estranhamente eu quis levantar e não consegui, fiquei inerte, achei que estava morto até, que era uma alma invisível preocupada em como seria aquele dia inteiro no trabalho, onde o tédio costumeiro jogaria o tempo todo essa lembrança na minha cara, e me traria na boca aquele gosto amargo de fim, que é até bem parecido com o de vinho seco. Por pouco não percebi que estava sendo tomado por uma silenciosa vontade de chorar, só porque estava totalmente distraído no barulho dos talheres que você fazia na cozinha. Mas pra minha surpresa você me trouxe o café na cama, e me fez não saber o que dizer... olhava profundamente, e sem respirar, o copo de Nescau, olhava as torradas e as frutas, como se deles eu pudesse extorquir as palavras que não me existiam até então. Quando o copo de leite, chocolate, e mágoa, já ia pela metade, você perguntou o porque daquele silêncio que não nos cabia. Isso fez com que finalmente passassem a brotar as palavras que não tinham, nascendo uma após outra com dificuldade, formando sentenças que preenchiam o quarto de uma temperatura de desabafo. Choramos abraçados, alheios a todos os minutos que haviam, até que percebêssemos em mudez que nos escapara a hora de ir trabalhar. Quando os sussurros soluçados se cansaram de nós, deixaram em seu lugar um tesão que nos deflagrou uma fúria que atravessou a manhã inteira, a hora do almoço, e fez o dia se esvair em amor... uma paixão que fez a segunda-feira, dentro do seu quarto, se esquecer que era segunda-feira, uma paixão em um pequeno quarto onde, sem esperar, soubemos fazer caber silêncios e gemidos, chocolate e Peter Pan, onde colocamos, de uma vez só, todas as eras e lugares do mundo.

sábado, 13 de setembro de 2008

Daniela


Foi num puteiro do Centro que eu conheci a Daniela,
dona de um sorriso que é quase um ferimento,
uma agressão a escuridão do ambiente.
Sua dança,
cinematográfico artifício do seu corpo
(o quadril viperino em movimento
e em curvas impossíveis),
um raro dom de seduzir, um truque,
fazendo meus sentidos inteiros acharem
os resultados mais absurdos,
mesmo para as mais simples equações do desejo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Do Que Ainda Resta


Chovem as folhas secas seguindo o fluxo
do trânsito,
resvalando nos carros amanhecidos,
rolando pelos geometrismos do asfalto.
Dia de trabalho,
o Centro azulejado de Setembro,
duas borboletas erráticas dançando
sobre os canteiros da Presidente Vargas
me trazem a melancolia doce de lembrar,
que a Primavera sempre me traz um ano a menos.
Enquanto vou me deixando ser apenas as imagens,
entristeço porque sinto esses sóis te deixando menor,
como deixam as poças de chuva do dia anterior...
não queria,
mas ando te perdendo depois de cada sono,
sem no entanto,
conseguir te esquecer.
Setembro levanta suas cortinas,
e quanto mais te trago aqui pra dentro,
mais você some sem deixar de existir:
é como seu eu fosse a terra,
e você a relíquia de uma antiga civilização que já tive,
eu vou te encobrindo aos pouquinhos,
te eclipsando para longe dos olhos,
te exilando da vista dos homens,
mas te deixando ressoar entalhada nos meus livros de história,
perpetuamente inscrita na carne do corpo do meu mundo

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A Hora É Para Sempre


Preso ainda àquele momento em que fui,
retido ainda àquela hora que passou,
e me deixou,
logo após e até hoje,
um outro eu totalmente outro,
absolutamente diferente do que era antes,
e agora desconhecido do tempo que segue...
um estrangeiro nos sucessivos instantes esses,
num eterno vir a ser um estranho de mim mesmo.

sábado, 6 de setembro de 2008

Munch


Existem dias em que algo quer compreender
o mundo em mim.
Existem dias em que choro baixinho
só p’ra preencher qualquer fragmento de silêncio
de um dia calado.
E tem esse estranho hospedado em meu corpo,
que só sabe bater e nem se dá conta do porquê,
essa coisa dolorida que é tão maior que eu,
que tenho que ir pelo mundo a doando em grandes pedaços,
na vã esperança de tornar o peito mais leve.
Pedaços!
Pedaços.
Pedaços...
Despedaçados...
Como são despedaçadas as cinzentas horas
imersas nessas ausências inauditas,
destroçando brutalmente com estas flébeis mãos
os dias de Sol.
Despetalando delicadamente,
com as pontas destes dedos magros,
os dias de chuva.

Aspiro dos meus braços o perfume enjoado
de uma flor maldita,
que só fez invernia no calor incansável do Verão.
Lembro em dissabor da sua boca que marcou neste corpo roto
a tatuagem mais dolorosa:
a marca do seu batom vermelho como o sangue de um deus!
Essa marca tão efêmera,
mas que imprimiu p’ra sempre em mim
uma ânsia imorredoura.

Mas quer saber de uma coisa?
Já basta!
Basta de lhe dizer coisas belas e doloridas!
Basta de lhe dizer palavras que só fazem sentido aos meus sentidos!
Vou me exilar dela!
Procurarei em cada fresta,
cada canto,
cada buraco,
uma dor p’ra minha dor!
Um grito p’ro meu grito!





Onde está o grito?

...

...

...
















Ela se aproximou devagarzinho
e o silenciou com o açaí nos seus lábios...

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Como Se Fosse Você


Saudades dos dentinhos tortos no seu sorriso,
da sua palidez pronunciando a fundura dos seus olhos,
dos seus pezinhos limpos voltados pra dentro...
Agora ando vendo você e a Clarinha
em outras mães e filhas,
e começo a fantasiar como seriam dias de pai.
Revi a sua fotografia,
que era como se fosse você,
e que eu tirei de cima da mesa.
Reli suas cartas,
que eram como se fosse você,
e que tirei do meio das minhas roupas.
E como se fosse você,
as coloquei no fundo da última gaveta,
que é o lugar para onde enviamos tudo o que passou,
tudo o que queremos que não mais exista,
mas que no entanto,
por força de algum laço que resiste,
não conseguimos nos livrar de vez.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Asas de Colibri


Hoje eu acordei cismado em querer ganhar asas!
Queria as imponentes asas do cisne,
as praianas asas da gaivota,
não! não!,
eu queria mesmo eram as pequeninas e céleres asas
de um colibri!
Asas negras e emplumadas pelas duras penas do amor!
Hoje tantas coisas,
pequenas coisas,
quiseram a todo custo me fazer chorar.
Minhas lágrimas estavam agitadas,
doidas para escapar e ganhar o mundo
por entre as grades onde encerro os sentimentos
(bem escondidos p’ra ninguém perceber...).
Só consigo enxergar tudo seu através de uma lente de encantamento:
a proximidade da sua casa me faz ver além da pobreza do seu bairro,
um lindo e tranqüilo jardim,
que o é, só porque eu sei que você está ali em algum lugar.
Hoje eu queria porque queria essas asas!
Queria voar por aí te procurando e procurando a mim mesmo...
E queria mais que tudo deixar o seu dia mais triste,
ao fazer você encontrar sob sua janela,
o cadaverzinho de um lindo colibri negro,
emplumado por tudo aquilo que tem penado...
E você penalizada nunca saberá porque ele morreu,
nunca na vida saberá que ele suicidou-se ao beijar,
sem você perceber,
esse suave veneno que escorre na lasciva flor da sua pele...

domingo, 31 de agosto de 2008

Saudação à Chegada do Inverno


O Inverno resolveu mostrar suas garras.
Amanheceu um dia frio de vento,
deserto das pessoas e ausente das folhas nos galhos.
São em dias assim que mando a minha vida
que me apresente algo mais vil
que o arrebatamento da paixão.
Duvido que haja em meu peito
algo pior para se amaldiçoar!

Desenvolvi esse mal incurável desde bem moço.
Da flor dos meus anos quase nada ficou,
passaram irrecuperáveis e melancólicos,
vagando entre os hermetismos de um livro ou outro.
Só tenho agora uma história de prantos,
essa transparente coleção de prantos:
já chorei músicas,
já chorei poemas,
já chorei telefonemas...

Prantos me compõem, dores me dispõem!

Uma vida sem um grande amor pode ser chamada vida?
Dirão que sim todos esses tolos insensíveis!
Mas a verdade é que voltar p’ra casa no costume da solidão
é o maior de todos os males...
E é por isso que gosto da beleza melancólica desses dias plúmbeos:
eles tem tanto em comum comigo,
que acho que as forças da criação cometeram um ledo engano:
eu não deveria ter nascido homem de carne e osso...
eu deveria mesmo era ter amanhecido manhã de Inverno!

sábado, 30 de agosto de 2008

Banzo Como Herança


Deixarei para meu filho,
se um dia o tiver,
esses olhos tristes como herança,
esse sem jeito ao sorrir,
e esse coração carente de atenção.
Deixarei as folhas amassadas
com esses poemas desprezíveis,
e os livros de história da arte, de filosofia,
Shakespeare e Garcia Márquez...
(mas espero que não os leia se quiser a vida mais leve...)
e deixarei essas coleções de objetos sem valor,
essas coisas de um homem melancólico.
Deixarei para meu filho,
se um dia o tiver,
esses amores efêmeros, essa boca calada,
e o amor masoquista pela beleza do mundo.
Deixarei entalhado na madeira do seu berço
a memória desses dias despetalados,
o romantismo descrente, e a inconstância da auto-estima.
Deixarei tudo isso que é meu
sob a luz clara do quarto azul ou rosa,
p’ra que ele possa a tudo ver,
e escolher não ser nunca em sua essência,
a imagem e semelhança do pai!

Safo Descoberta


Não sei se entristeço ou acho graça
por conhecer o motivo do seu “não”.
Porque não pude conter a surpresa ao descobrir
que nosso gosto é gêmeo,
que o meu objeto de desejo,
no fim das contas,
é o mesmo seu.
E hoje, sob a luz dessa descoberta,
eu já consigo perceber os seus sinais...

Ontem à noite, vendo as fotos dela outra,
me surpreendi ao conhecer alguém tão mais linda
(até muito mais que você),
que até pude compreender a sua escolha:
ela é tão mais linda,
que mesmo se eu tivesse o sexo igual ao seu,
eu acho que também iria preferir tê-la mais do que a mim.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Até Você Se Pôr


Você descia a rua com aquele seu vestido leve,
gracioso,
ondulando na mesma brisa em que flanava seu perfume indestrutível,
caminhando sobre o sol dos paralelepípedos,
como se fosse um sol de outra natureza,
resoluta, sem olhar p’ra trás,
p’ra fazer pouco,
p’ra não notar,
meus dois olhos magros no portão.
Esqueci do tempo no vidrar dos seus cabelos,
alisando os ombros,
avançando sobre a linha da coluna,
num balançar que ora escondia, ora mostrava,
a palidez plástica das suas costas nuas.
Tranco o portão domando o impulso irresistível de trazê-la de volta aqui,
porque é hora de enfrentar o tédio do dia,
ébrio o tempo inteiro de tanto queimar o filme do meu pensamento,
repetindo infinitamente a cena de ver você se pôr no horizonte de paralelepípedos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

As Cores


Lembro-me dos seus despidos rosas-chá:
os seus lábios unidos,
os seus mamilos pequenos,
a fenda estreita do seu sexo...
brilhantes úmidos inteiros pra mim.
Rosáceas marcas nessa sua fosca pele cor de creme,
cor de gelo,
sua pele que pelo tom nem parece pele,
parece o movimento humano de uma pintura a pastel.
Via que seus rosas eram pálidos,
fugazes pinceladas cor de carne,
esforçando-se para se destacarem para além desse corpo cor de areia de duna,
essa lisura onde tudo o que é escuro toca,
tudo que o que é escuro envolve,
e cai em um contraste absoluto...
é assim com seus próprios cabelos e olhos,
com a cor do tecido do seu lingerie,
com a existência do meu corpo por perto...
é assim com a onipresença inevitável da noite,
o manto negro das nossas horas.
Um contraste absoluto...

Lembro-me de olhar profundamente cada poro no seu rosto,
como se não houvesse mais nada que pudesse ser visto,
como se a paisagem inteira se resumisse a você.
No nosso abraço parecia-me que a vida se tornava lembrança vaga,
um devaneio infantil,
um desejo insondável,
naqueles dias que só ganhavam pleno sentido quando você chegava,
e todas as coisas, então,
adquiriam o seu rosa, o seu preto, o seu creme...
O momento te trazia tão mais bonita que tudo,
que o mundo pintava o rosto com as suas cores,
e tudo nele se enchia de uma esperança
de tentar se parecer um pouco mais com você.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Breve Tese Sobre o Encantamento Após as Palavras de Larissa


Acho que meu maior talento é essa patética facilidade de ser encantado, o que quase sempre leva minha boca a aguar a saudade de qualquer beijo, o que, quase todas as vezes, me traz o apego, e o apago, a qualquer caso de fim de semana. Nos tempos ausentes de amor, faço dos dias uma busca incessante, quase uma missão que não descansa mesmo quando satisfeita, e que me diz que não sou apaixonado pelo outro em si, eu sou apaixonado, na verdade, é pela própria paixão. É uma espécie incomum de necessidade, uma dependência, como se eu só pudesse sentir meu corpo vivo se eletrificado pelas correntes nervosas da vontade, como se eu fosse um míope que só pudesse enxergar o mundo através da lente de angústia do encantamento. A distância do objeto de desejo, todo esse espaço não presumível, todas essas horas que convergem para o inevitável encontro ou desencontro, me transbordam de uma sensibilidade estranha, onde até a iminência do cheiro do mar me provoca ansiedades, onde até as músicas de amor de gosto duvidoso parecem me falar.
Mas isso tudo não passa de mania de poeta, que a tudo enfeita, a tudo ressignifica e dá profundidade... se perguntarem a alguém mais sóbrio, com certeza ele dirá que é apenas carência mesmo...

sábado, 16 de agosto de 2008

Simulacro


Quantos anos ela terá?
Metade dos meus talvez...
Ela me olha a toda hora,
ela me olha quase sempre,
ela sabe que eu olho p’ra ela também.
Ela é menina ainda e mal pode imaginar,
que minha incapacidade de desviar dela,
é porque vejo nela de forma quase incorruptível,
o tênue rosto da Louise em traçados infantis

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Simplice


Foi ao lado dela que eu descobri
que o amor não é absurdos,
não é entupir a casa dela de rosas,
não é mandar um avião escrever
o nome dela com fumaça no céu...

Foi ela que me mostrou que o amor
também habita, e sobretudo habita,
as coisas mais simples...
Ao lado dela eu descobri que amor
também é levar os filhos dela ao dentista,
também é varrer as folhas secas do quintal,
enquanto na cozinha ela prepara o nosso macarrão.

sábado, 9 de agosto de 2008

Canis Elegia



Sempre me achei de uma frieza estranha por nunca ter chorado em ocasiões de luto. Quando soube da morte do meu avô, da minha avó, me enchi de pesar, mas não consegui derrubar uma lágrima sequer. Sempre me cerquei de muita filosofia, sempre tomei essa ciência que, como dizia Montaigne serve “para aprender a morrer”, como uma verdade absoluta, achava que talvez essa minha circunspeção adviesse desse entendimento maior sobre os mecanismos da vida. Mas hoje minha cachorrinha, a Nala, morreu... e eu chorei feito criança. Um choro secreto, um choro de quarto trancado. Foi aí que eu descobri porque com ela foi diferente: dela eu não soube apenas, eu estava lá com ela no momento da injeção letal. Eu a levei de casa pela manhã sem saber que ela não voltava, e eu a enterrei, ela que amei, eu a enterrei reduzida apenas a uma massa de carne peluda e morta. E se agora choro não é porque me lembro dela, como não chorei por apenas lembrar dos meus avós... eu choro porque ela deixou um último olhar em mim, como se suas íris castanhas reverberassem nas profundezas do meu íntimo: “Luis, eu me vou, mas não posso te deixar sair ileso dessa!”.
Só que ela não devia ter feito isso... é tão pesado carregar os olhos dela...
Em alguns momentos, por alguns lapsos de memória, ou por costume, ou por afetividade, eu acho que vou encontrá-la ali, acima dos degraus, com a cabeça acima do cercado, com as orelhas murchas e abaixadas pela felicidade de me ver... só que o que encontro é um terraço vazio, onde até as fezes que ainda restaram dela me estilhaçam um pouco mais.
O resto de comida do meu prato agora vai p’ro lixo, enquanto reflito que a ausência do barulho das suas patas é o indício que ela não mais existe. Eu ouço fogos de artifício, mas não ouço os latidos de resposta, e nesse momento eu sei que o silêncio dela agora é o silêncio em mim, é o silêncio do meu quarto, é o silêncio da casa toda.

Rio de Janeiro, 09 de Agosto de 2008

sábado, 2 de agosto de 2008

Ninfeta(mina)


Por ser tão antigo já aos vinte e seis,
me assola essa veemente culpa
de te enxergar nesse desejo morno:
você assim, com apenas metade,
ou um pouco mais,
do meu desvanecimento aqui no mundo.
Guardo o olhar escondido,
mas caído sobre o jogar dos seus cabelos,
única coisa sua que se pode afirmar ser já de mulher.
Mantenho os olhos atocaiados em minhas pálpebras,
inertes no seu corpo ainda magro,
e que segue emparelhado com ônibus preso ao engarrafamento.
Seu caminhar lento,
os traços irrepreensíveis da sua maquiagem,
os seus trejeitos de pretensiosa mulher feita,
só denunciam a altivez de quem sabe,
que ainda crescente,
já consegue ser refúgio do desejo dos tolos.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Sob Um Céu Azul Claro, Sobre Um Céu Vermelho Escuro


Do alto do décimo oitavo andar ela via o mundo se modificar. Observava a multidão diminuta do centro da cidade, os carros coloridos e brilhantes cruzando, entre a luz do sol e as sombras dos prédios, a avenida distante. Como uma ave de rapina a procura da presa, ou como o olho onisciente de um deus enfurecido, ela perscrutava inconscientemente toda a paisagem em busca de algum detalhe em que pudesse se ater. Era o tédio do escritório que ela tentava amenizar pela janela, entre um cigarro e outro, entre um copo de café e outro. Era o horário do almoço, o sinal que marcava mais meio expediente de monotonia.
Olhava todas as coisas rápidas, todas as coisas lentas, tudo o que se movia, e aguava um fastio de perceber que aquele movimento não chegava até ela, não alcançava a altura do andar onde ela se encontrava. Vagava os olhos pela sala do escritório, e nada esboçava vida, nem uma única folha ameaçava cair no chão forçada por alguma brisa repentina. Vigiava as pessoas, que dali de cima lhe pareciam tão insignificantes, e imaginava os milhões de pensamento em desvairada sucessão, a cada milésimo de segundo, dentro de cada cabeça daquela manada desenfreada, e presumia que tudo o que se dava ali, pulsava em amor e ódio, em alegria e tristeza, mas entristecia na certeza de que nunca na vida poderia conceber as preocupações do mundo, nunca poderia mergulhar na motivação dos seus sentimentos. Ergueu a visão acima da capa de poluição que recobria o horizonte e viu o céu azul, o mesmo céu que no trajeto diário dentro do ônibus ela só vê refletido no corpo envidraçado dos prédios. Apagou todas as outras impressões que tinha do mundo na ciranda de gaivotas que pairavam um pouco acima da sua janela, e naquele instante não teve nenhum pensamento, só teve vontade, um desejo insondável de viver na beleza do cotidiano de todas as coisas, vontade de que sua vida, que é só sua, contivesse um pouco das outras também.
Resolveu aproveitar o pouco do horário do almoço que lhe restava, já que não comera nada, e sair daquele confinamento de papéis e monitores. Pegou o elevador lotado, e percebeu que o silêncio velado dos seus passageiros sempre faz o trajeto, entre um andar e outro, parecer duas vezes mais longo. Quando ganhou a rua, a primeira coisa que a atingiu foi o sol tépido do outono amornando sua pele ressecada pelo ar-condicionado. Esgueirando-se entre o vai-e-vém das coisas, se sentia como uma natureza estranha aquilo, como se todo o tempo estivesse andando, mesmo que não estivesse, no sentido contrário ao da maré. Estudava todas as faces, mas ninguém lhe devolvia um escrutínio qualquer que fosse, descobria que os ombros se chocam e passam, mas os rostos apenas passam... Parou em frente a uma loja onde algumas peças de roupa lhe chamaram atenção, e por um átimo achou ter visto alguém, através da vitrine, lhe mirando fixamente de dentro da loja, mas logo percebeu que era seu próprio reflexo no vidro, e se sentiu esquisita por esse momentâneo não reconhecimento de si mesma. Pôs as mãos pálidas sobre o rosto branco agora corado pelo sol, e o tocava como se o tocasse a primeira vez, com o cuidado com que se toca o rosto de um estranho. Começou a enxergar o seu cabelo amarrado, e o tailleur preto que vestia, como uma espécie de desfiguramento. Soltou os cabelos num só gesto impensado, e eles caíram macios e lentos, num pouso ligeiro que acobertava por completo os ombros esguios. Parecia-lhe que isso amenizava o seu desconhecimento de si, e lembrou com um misto de ansiedade e angústia do fim-de-semana, quando ela podia ser ela mesma, quando podia ostentar seus piercings e tatuagens pelas praias e noites do Rio. Mas logo se deu conta que era burrice continuar ali parada, admirando saias e olhando nos olhos a imagem de uma quase desconhecida.
Seguiu o caminho atenta a todas as coisas, e se deu conta que algumas delas concorriam umas com as outras, como quando vê, em espirais amarelas dançando pelo ar, o perfume da moça workaholic que passa por ela, digladiando-se invisível com o odor do mendigo que dorme na esquina onde repousam incontáveis urinas noturnas. Estava sensível a tudo, tudo abandonava nela uma sensação incompreendida, tudo aderia a ela e ficava ali retido e embolado no peito e no pensamento. Chegou a conclusão que estava ficando deprimida, concluiu cheia de medo porque se conhecia... era por demais melancólica, e temia que se entrasse nessa de depressão, não conseguisse mais voltar. Imersa, quase afogada, nessas lucubrações, com os olhos fixos na avenida, mas não apreendendo nada do ambiente a sua volta, atravessou... quando deu por si o ônibus já era um gigante do seu lado esquerdo...
A última coisa que viu foi um céu vermelho quase límpido de nuvens carmim. O céu que ela via diariamente espelhado nas vidraças dos prédios, exceto pela cor, era o mesmo céu no reflexo do sangue que vertia a sua cabeça. Viu um sentido de beleza naquilo tudo, achou bonito morrer daquele jeito, porque parecia-lhe que o céu inteiro fluía dos seus pensamentos.

domingo, 27 de julho de 2008

Senhora da Arcádia (ou Oberon e a Rainha Titânia)


Sonhei de você um sonho tão bom,
que quando acordei já sabia
que teria um dia de horas desfeitas.
Na reunião de toda minha vontade
desejei viver no engano, morrer no apolíneo do sonho,
tapear essa tragicidade humana que sempre encontrei
mais no amor do que na morte.
Alvoreci o desejo do seu corpo musculoso
pesando novamente sobre o meu,
e agüei ter percebido como éramos tão bonitos,
nós dois, um casal de dessemelhanças,
você nessa sua força e inconseqüência,
e eu com essa minha fragilidade de vidro,
te fazendo meu homem perfeito,
e me deixando ser a sua mulher submissa.
E foi quase um exercício filosófico
achar que tudo na vida me fez o que sou
apenas p’ra esperar pela sua chegada...
E que, no entanto, nada do que fizemos,
nenhuma daquelas nossas reminiscentes tardes,
soube me preparar p’ra sua partida...
Mas vou bebendo (e engasgando) enormes tragos de alívio,
enforcado nessa irracionalidade de olhos abertos que é a poesia.
Vou passando os dias como o velho solitário,
que na sua pequena e embolorada casa
não faz nada além de alimentar seus cães,
colocar as gaiolas da varanda sob o sol da manhã,
e chorar as fotos em preto e branco de alguém que já dorme,
mas que ele amparado pelo vinho,
ainda a vê olhando p’ra ele,
pelas frestas das portas e das janelas emperradas.
Sou esse velho que espera por um infinito sono,
do qual, como um Hamlet vencido,
ele não precise nunca mais despertar.
E será novo e derradeiro o sonho que criei p’ra mim:
quando vai dar na telha dessa sua oca cabecinha loira
a loucura de assumir a minha vida,
p’ra finalmente dividir os meus armários,
colocar mais um prato na minha mesa,
e com seu malicioso sorriso de moleque,
ter de volta o prazer que você vivia falando ter,
ao me ver, por sua causa,
atear fogo em todos os meus navios...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Menina dos Olhos


Tudo se recolheu em silêncio quando ela cruzou a minha frente imersa no movimento escuro da pista de dança. Entre um e outro copo de cerveja, eu passei a espreitá-la esquivando meus olhos de outros rostos fugidios. Na penumbra barulhenta tudo era impressão, tudo era desfocado, só ela, só a face dela, resistia definível. Uma hora a multidão, como se comprimida pela força dos meus sentidos, se abriu, deixando eu e ela apenas separados pelo desvario dos fachos de luz caleidoscópicos. Isso me imbuía de uma espécie de coragem incerta, que amparada pelas muletas do álcool, me chamava em agonia para ir até ela... mas estanquei quando, no meio do segundo passo adiante, a minha racionalidade entorpecida resolveu elegê-la como a musa intocável daquela noite, e que trocar qualquer palavra com ela seria contar com a possibilidade do seu “não”. Isso acabaria com o encanto, isso mataria aquilo que criei e que só existiu em mim. Fiquei quieto e embriagado no meu canto, entre uma música e outra, entre uma lembrança da Louise e outra, eu ouvia meus amigos me encorajando. Porém, tudo soava tão distante, e eu, com aquele meu sorriso de lado meio blasé, achava tudo de uma tristeza tão bonita...
Meus amigos não sabiam que ali, apoiado nas caixas de cerveja, enquanto a minha angústia começava a soprar em meus ouvidos alguns primeiros versos, eu a tinha por completo, muito mais inteira que qualquer casal daquele lugar poderia ter um ao outro.
Talvez eles nunca saibam que para um poeta, admirar uma coisa, já é vir a habitá-la.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Hoje pela manhã...


Hoje pela manhã, sua namorada morreu de pico.
Já ressequida de lágrimas, estendeu o braço fino para além da janela, e correu suavemente os dedos ossudos pelo céu, só para constatar, surpresa, que havia desfeito algumas das raras e minguadas nuvens. Abriu calmamente o zíper da calça, e a deixou cair, deslizando pelas pernas de porcelana, se libertou do lingerie preto em gestos que soavam ritualísticos, e despida menos das roupas que de si mesma, se afundou como um corpo inerte naquela cama toda desarrumada, mas antes que pudesse se abandonar por completo ao relento da tristeza, sentiu arder nas narinas a atmosfera daquele quarto espesso de lembranças, um cheiro que volutava acinzentado, formando arabescos que recendiam repletos e transbordantes do estrangulamento invisível do desaparecimento. Seus olhos foram dar, involuntários, no espelho que emergia através escuridão sobrenatural do armário aberto, e mesmo engolida pela densidade amarga do ambiente, conseguiu se ver nua e branca, mirou-se absoluta, porém estranha e torta, do avesso. Os pés de criança sujos e mal cuidados, a ossatura protuberante dos joelhos unidos, servindo de égide contra o reflexo incorruptível da fenda estreita do seu sexo. Perscrutou seu quase não-corpo de magreza mórbida, quase esvanecente, aquela palidez plena, quase dissoluta no ar, e viu a barriga e o umbigo se esforçando para manifestarem-se acima da fundura das costelas bem marcadas e rabiscadas. Perdeu-se por um tempo, se apagou das impressões do mundo, no acariciar da tatuagem, que entre as dezessete que tinha, era a que mais gostava, era a que tinha feito para celebrar um ano de amor: as andorinhas do ombro esquerdo... Olhou-se nos próprios olhos, que lhe pareceram dois espelhos dentro do espelho, e precipitou-se num duplo abismo de imagens infinitas, e enxergou seu rosto surrealista duas mil vezes simultâneas. Nem ligou muito para os cabelos pintados de vermelhos e desgrenhados, só reparou, desinteressada, que eles eram donos do mesmo tom do vinho que se apossou do chão, cuspido de um copo estilhaçado pela força de um telefonema. Achou bonita, de certa forma, a maquiagem manchada, marcas de lágrimas pretas, indiciando falsamente o carinho em seu rosto de mãos sujas de carvão.
Atraída inexoravelmente de volta para a janela, sente seu ombro esquerdo formigar numa espécie de dor contrária, na inversão de uma ardência: as andorinhas tatuadas descolando-se e fazendo ciranda pelo ar chumbo do quarto antes de cruzarem o batente da janela e darem-se para o azul das nuvens desfeitas. E naquele momento, ela colheu forças invisíveis para cometer o impossível de um quase sorriso trêmulo e imperceptível: entendeu aquilo como um convite bonito para o vôo derradeiro, para o abraço da velocidade vertiginosa de uma última queda.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Trimurti


A Canção da Criação
Os terraços ensolarados agora me lembram de sexo e Verão.
Aquele nosso amor de rede e terraço que nem ligava p’ras janelas vizinhas,
que nem se importava p’ro galo que despertava Arraial do Cabo.
Aquele nosso amor que ia, ainda não satisfeito,
varar o dia que já sangrava vermelho a pele escura da noite,
e que só cessava quando o sol azul do carnaval não deixava saber
o que era céu ou o que era mar ao longo da Praia dos Anjos.


O Mantra da Preservação
Mas agora sim, são possíveis dias felizes novamente!
Felizes diferentes porque simples.
Felizes porque dias dentro dos seus dias.
Voltei p’ra casa varando a noite que passa inexistente de você.
Eu retorno calado porque eu mesmo inexistente de você.
Tudo vira saudade já depois de cinco minutos da despedida.
Quantos relentos conheci até achar a chave dos portões da sua vida,
quantas vezes o último cavaleiro triste na cidade sem luzes...
eu que ia cavalgando na impossibilidade do seu esquecimento,
abraçando versos na flor e na dor de qualquer coisa,
me fiz criança indefesa sendo levada pelas mãos da saudade,
sendo guiado através dos jardins esvaziados dos meses que não te souberam.
Andando torto e embriagado de vazio,
porque até no vazio que eu bebia,
encontrava o gosto alcoólico do seu perfume.


A Dança da Destruição
O seu rosto sempre me foi tão difícil,
que me permiti ser preenchido de emoção,
quando ontem,
no limbo escuro dos olhos fechados,
ele me veio tão claro e preciso.
Foi uma epifania tão palpável,
que desfeita das brumas do não-apreender,
a sua face soou como um augúrio de que dessa vez tudo andará reto.
Eu soprei o seu perfume entre as palmas das mãos,
e trouxe comigo os seu cheiro tentando escorrer entre os dedos,
fugindo pelos pêlos do meu braço,
exalando no peito da minha camisa,
com ele trouxe você em mim,
p’ra perfumar o meu quarto com a sua presença arredia.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Um Verão Que Ainda não Terminou


Desde que você partiu
Ipanema tem andado tão triste,
sussurrando saudades da morena
que maculava o amarelo da areia
com sua cor de açaí.

Desde que você partiu
eu fiquei sozinho no calçadão,
chorando o último pôr-do-sol
de um dia que não morria,
de uma noite que não chegava...
deixando um eterno entardecer
avermelhando os vidros nas janelas
da Vieira Souto.

Desde que você partiu
as ondas nunca mais amansaram,
batem e batem, engolindo a praia,
querendo loucas preencher suas pegadas
que o vento já roubou.

Desde que você partiu
coloquei meu coração,
esse souvenir vagabundo,
a venda baratinho,
numa daquelas barraquinhas de badulaques
da General Osório...

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Pathos


Tenho vinte e cinco.
Meio caminho, meio termo,
mas me sinto muito mais p’ra trinta que p’ra vinte.
E só agora desvaneci romantismos,
só agora percebi que quartos de hotel são todos diferentes,
as putas é que são todas iguais.
Sinto saudades, fico triste, nos lugares mais improváveis,
fico assim até mesmo entre as pernas de uma mulher!
E boteco nenhum me salva dessa patologia,
só volto p’ra casa embriagado de sono e de versos ruins...
antes bebesse até cair,
porque a ressaca de versos ruins é infinitamente pior que a de vinho.

Meus amigos bem que tentam a alegria,
e às vezes até conseguem,
mas eu já nem tento mais.
Assumo de vez esses olhos vazios como os filhos indesejados
que chegaram no momento errado,
mas que assim mesmo devo amar simplesmente
por serem carne da minha carne,
sangue do meu sangue:

-Mulher, eis aí o teu filho!

terça-feira, 24 de junho de 2008

A Casa dos Espelhos (ou Narciso Febril)


Ela se parece mais comigo que o meu próprio rosto.
Cada retrato dela é um espelho d’água,
onde miro o que eu deveria ter sido,
o que eu queria ter sido e não consigo...
Portanto ela é o meu eu mais verdadeiro que eu mesmo.

Em qual espelho um dia ela verá o meu rosto?

Pendurado na parede insone do meu quarto
dorme o espelho onde ela se mirou quando fez a visita da minha vida,
o espelho que eu guardo como se a imagem dela tivesse ficado ali impressa...
porque acredito que um espelho não é uma superfície refletora,
um espelho, na verdade, é uma fotografia que não retém...

E todos os dias eu me olho e não me reconheço,
porque na superfície refletora eu vejo o interior de mim,
e o que eu vejo é só aquele rosto dela,
e o que eu vejo é só aquele rosto meu...

E agora como vou esquecer

se já não consigo mais me olhar

sem te ver?


A sua presença ficou gravada no meu espelho.

Espelho que penduro pela casa
para me refletir em todo canto.
Espelho que carrego comigo louco de febre,
só para deixar sua presença espalhada
pela minha casa inteira...


segunda-feira, 23 de junho de 2008

O Incrível Hulk



Hoje por força de mais uma melancolia morna eu não pude suportar voltar p’ra casa depois do trabalho, e resolvi, então, ir ao cinema. Estamos no inverno, chove e faz frio na noite do Centro, e ando meio gripado novamente. O cinema estava vazio e, durante o filme eu pensei na Louise ao olhar p’ras minhas mãos, e lembrar que ela sempre cuidava bem das minhas unhas, e que se agora elas andam roídas, é o mais claro indício do abandono.
Eu lembro que certa vez, ela achou engraçado quando eu disse que amar é aumentar a conta do telefone, só que amanhã faz três semanas que ela não está mais aqui, e entristeço ao pensar que a próxima conta de telefone vai chegar “normal” esse mês.
Voltei o caminho todo me perguntando se a Louise acharia tanta graça se eu dissesse a ela, que hoje eu descobri que solidão é ir ao cinema nas segundas.

domingo, 22 de junho de 2008

Himeneu Entristecido



Pelas horas de espera adentro
eu rendei um vestido com o fio da solidão...
E me saiu uma peça tão bonita!
É um diáfano vestido de noiva,
cheio de botões de lágrimas cristalizadas,
e feito p’ra ser usado uma única vez,
p’ra depois, roupa-símbolo da noite da minha vida,
durar uma era inteira junto a não-existência das coisas de fundo de armário.
Noventa dias eu te esperei na janela,
vigiando a chuva na cidade,
bordando arabescos de paixão incontida
parindo formas barrocas na cauda longa,
feita inteira com os moldes da saudade.
E quando o mundo nos entregou à nossa hora,
como um anjo me ascendi aos seus altares,
e disse “sim” p’ra tudo o que fosse seu,
e disse “sim” p’ra tudo o que viesse p’ra nós dois.

Mas depois de um tempo, como é normal acontecer,
o mel da nossa Lua apodreceu e amargou...
e eu já não te conhecia mais,
e você já não via mais o meu rosto.
Virei Penélope a te esperar mais uma vez então,
nessa costura infinita,
ainda na janela que vigia a cidade,
agora ensolarada pelo amarelo que irradia seus cabelos.

E se tiver que voltar, meu amor, mande me avisar!
Porque eu tiro o mofo,
exponho ao sol o meu vestido,
e vou me perfumar,
p’ra sair por aí a bailar com você,
sob os olhos escuros do mundo,
naquela nossa antiga ciranda nupcial.

Mas se não conseguir voltar me avise mesmo assim...
porque aí eu me entrego ao choro derradeiro,
e mando cortar o vestido p’ra fazer um lençol branco,
que manterei guardado na gaveta junto as suas fotos,
envolvendo as suas cartas,
até que tudo que é lembrança sua se impregne pelas rendas,
se mescle a constituição do linho e da seda.
Até que seja um tecido de detalhes vazados de memória,
uma fazenda composta de vestígios da sua presença.

Então, quando eu morrer,
irão me cobrir com esse lençol que me fala de você.
Farão dele uma delicada mortalha para meu corpo,
um sudário ornado com a singeleza e dedicação
dos meus dias que foram seus.
E será como sentir sobre a pele o vestido por uma última vez,
será como se eu fosse sua noiva novamente,
ansiosa sobre o altar de velas apagadas do não-ser,
a esperar por toda a eternidade um “sim” que a morte tornou impossível.

sábado, 21 de junho de 2008

Fada dos Temporais



Minhas retinas regem,
esquecidas de mim,
um balé de folhas secas
que rodopia dentro da cidade descolorida,
palco cinza que anuncia a tempestade.
Ela cruza a minha frente correndo
e nesse gesto ela já me tem,
ela rouba o meu olhar da ciranda de folhas mortas.
Ela segura a barra do vestido xadrez
p’ra que a ventania não o levante...
e seu sorriso é tão lindo!
que por quase dez segundos eu deixo de lado os pesos da minha cabeça.
São nesses momentos que meus olhos me provam
que eu não existo,
só o que vejo,
só o meu desejo.

O expor dos dentes brancos,
ao contrário das minhas íris enegrecidas,
é algo de natureza estranha aquele cenário,
eles fazem um rasgo clarificado na pele da paisagem em monocromo.
Então percebo que é um lastro nas coisas tristes,
o sorriso dela p’ro vento ousado
é um lastro nas grandes e pequenas coisas entristecidas.
Pois não só corrompe a uniformidade das cores desbotadas
de uma cidade que aguarda a torrente,
mas também vara de um lado a outro o que trago por dentro,
essa paisagem onde há muito o temporal anda caindo.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Pastel Seco Sobre Tela




Passei a noite enxergando a Louise
na beleza quase fictícia das meninas noturnas.
Pela manhã eu deito no colchão na mesma posição,
para reconstruir novamente a cena,
para ainda ver,
mesmo que esculpida na miragem da saudade,
as omoplatas nuas naqueles momentos antes dela ir trabalhar,
as clavículas pálidas da Louise,
num último respiro antes de serem tomadas pelo vestido.

Louise era alheia a qualquer sedução no seu vestir,
dava as costas p’ros meus olhos entupidos de desejo,
como se eles não fossem dignos de amargar
a fronte do seu torso branco uma última vez.
Ela era assim,
bonita sem o saber ou querer,
imersa na casualidade de uma mulher
quase avessa a qualquer a qualquer vaidade.
Louise foi toda movimento e impressão:
eu a enxergava em riscos rápidos,
diáfana e indefinida,
mas de uma fugacidade que não dissolve porque a capturei,
de uma beleza esguia que não me escapa.

Hoje eu vejo a Louise nas bailarinas de Degas.