sábado, 26 de março de 2011

Olhos de Modigliani


Esta noite sonhei que me suicidava no
abismo das órbitas vazias de Modigliani.
Estranhamente nessa mesma noite
antes de dormir
relia Akhmatova cuja dor faz me apaixonar.

No meio da madrugada pensei nos dois
melancólicos e sentados num café
dentro da monocromia do inverno parisiense:

a poeta com a cabeça na palma da mão
se permitindo um meio-sorriso
branco contra o chumbo da luz de Paris
límpido mas gelado como o seu Nevá.
E o triste pintor de frente pra ela com
seus olhos caídos (realmente caídos)
acima da borda de uma xícara
tendo da cena uma sensação vizinha da alegria.

Pra seres frágeis de tanta sensibilidade
como Modigliani (disso eu sei bem)
o gesto doeu mais que qualquer outra coisa:
no sorriso da amiga
ele foi ferido de morte por um único segundo
habitado por inteiro de duradoura beleza.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Eu no Poema em Mim


Estou no poema escrito como
uma presença semi-oculta
como a sugestão de um vulto.
Estou no poema escrito como
o sal do mar só impõe a sua
presença a quem mergulha
como uma sombra que só
indicia ao que se refere.

O poema depois de escrito não
me pertence mais...
me questiono até se ele ainda sou eu...

É que quando poetizo meu íntimo
(ínfimo)
ninguém na vertigem suburbana
consegue parar e escutar...
mas é um rompante dentro de mim
que se eleva acima dos sons da cidade
e de dentro desse quarto
dilacera o silêncio do universo inteiro.
Rasga!
Rasga esta pele sensível!
Despedaça-me entre tuas mãos pequenas
como se eu fosse um poema mal escrito!

domingo, 13 de março de 2011

Descarnavalização


“Se teu olho te escandaliza, arranca-o.”
-Schopenhauer

É possível estar no centro sem
estar no meio?
O carnaval disse ao pierrot que sim.

Velhos amigos onde estarão?
Ele os desejou mais que tudo
no corpo colorido do carnaval...
Mas o pierrot sofreu a toa
porque ele já sabia que a
vida do outro é
desde o início
um pedaço de perda.

Alguns olhares
alguns sorrisos
“o olor fugaz do sexo das meninas”
e dos amores líquidos só
lhe restou a chuva.

Por isso
o pierrot estava sensível as
janelas acesas dos apartamentos vazios
onde fantasmas olhavam a multidão e
sentiam saudades.
E o pierrot olhava sua cara branca nas
poças de lama de cerveja de mijo
e se perguntava:
“Sou um fantasma então?
Meu lugar é ali entre os mortos
entre as memórias
que sentem saudades?”

Sua lágrima é negra pierrot
porque o carnaval que você não pôde ter
tornou o seu íntimo um breu absoluto.

Fields of Gold


Você é de carne e osso
e isso é o que mais dói:
saber que você é num mundo
que te esconde.
Nem sequer supor teus dias é
quase supor tua morte.

E o fato de tanto arder sem nunca
te decifrar não faz disso aqui
um platonismo...
é de uma complexidade mais sutil:
você é quase uma teoria filosófica.

Uma mulher-esfinge
de quem se busca a verdade
no incessante semi-sono
na espúria bebedeira
na fotografia das coxas brancas:
mesmo o volume das tuas coxas brancas
mesmo essa concretude tão
prenha de calor e cheiro
é uma hipótese insolúvel.

Quando por mim
você chorou lágrimas de álcool
esperava a brutalidade do que não sou...
Mas você sempre soube:
sou um cara que quando algumas
músicas tocam no rádio
se flagra o mais delicado de todos os homens.

Por isso
não me atinja assim desse jeito:
seja menos arisca:
não sou filósofo
não pretendo desvelar o seu mistério.
Sou apenas poeta
e como tal
apenas quero participar dele.

Noturnismo


Um rapaz negro às 10 horas da noite
vendendo livros na calçada
livros que ninguém comprará:
pra mim ele é
uma sombra de suprema tristeza
mas também é uma sombra imperceptível
(como também posso ser)
pra ela que passa dentro das suas meias
das sua sapatilhas de bailarina
dentro do seu formato de corça.

Enquanto isso
casais suburbanos se amando nos
pontos de ônibus de Copacabana
(pelo modo como se dão só podem ser suburbanos)
e sei que naqueles beijos há todo o sentido
há todo o mistério...

E mesmo com a noite me soletrando a vontade
das noites que quase não puderam haver
mesmo estas horas me impondo intimamente
que o tempo das noites acabou
paira no ar a pergunta:
se um dia eu voltar ao seu seio
ainda me quererão horas noturnas?

Praiana


As ondas escavando a areia sob meus pés
me falam da impermanência:
como bilhões de anos antes não estive
dói saber que um dia voltarei a não ter
a possibilidade do mar.

Mas a névoa do pensar desvanece quando
dentre as barracas coloridas
ela surge morena:
um rosto ferino
felino
leopardo de olhos castanhos
uma magreza inconcebivelmente perfeita
que quase não cabe na medida do que sonho.

Ela não teve coragem de entrar no mar e
se voltou pra mim num suspiro
(a barriga engolida pela fundura das costelas)
e o insondável oceano cristalizou
num silêncio agudo.

Quando poetizo
(indivíduo único e singular)
é a voz do universo inteiro que canta...
por isso
através dos meus olhos o posto 8
Copacabana inteira tão acostumada a
abrigar as mulheres mais bonitas da face da terra
não esquecerá (mesmo depois de mim)
e registra aqui
com as minhas mãos
aquele momento de suprema beleza.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Minifestorgia


menos missa & mais bloco de carnaval /menos coral & mais atabaque/ menos literatura & mais musculação-lipoaspiração/ menos musculação-lipoaspiração & mais literatura /menos reflexão & mais transpiração /menos novela & mais reflexão /menos gregório duvivier & mais ferreira gullar/ menos erosofia & mais erorgia /menos manoel carlos & mais buñel /menos lady gaga & mais caetano /menos elitismo & mais baile funk /menos são francisco de assis & mais exu /menos futebol & mais playstation /menos escritório de contabilidade & mais vila mimosa /menos capa da playboy & mais vizinha do 602/ menos inglês & mais italiano /menos casamento & mais afetividade livre/ menos cama & mais chão/ menos sono & mais lapa/ menos leblon & mais madureira /menos água & mais vinho /menos bodidarma & mais bukowski /menos hegel & mais schopenhauer /menos descartes & mais andré breton /menos nova york & mais nova delhi /menos sandy & mais mônica mattos /menos discurso & mais intercurso /menos roberto carlos & mais ney matogrosso /menos agência de banco & mais livraria


menos cotidiano & mais poesia