sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Sétimo Selo


Tristeza cansa.
Alegria também.

Sexo cansa.
Não comer ninguém cansa.

As pessoas cansam.
A solidão cansa.

O trabalho cansa
O ócio cansa.

Enfim
a vida inteira cansa.
Porém
só a morte
e a arte
descansam.

Aristóteles no Caos


A Via-Láctea é uma.
A Via-Láctea é uma
galáxia entre infinitas galáxias.
A Terra é um planeta
entre inumeráveis planetas e
na sua superfície carrega cinco
massas imensas de chão acima do mar
que chamam de continentes.
Os continentes têm neles linhas tatuadas
(apesar de que eu nunca vi nenhuma)
chamadas fronteiras.
Dentro dessas fronteiras existem países.
Um país é formado por homens e livros.
Os livros eu não sei quantos são mas
os homens são bilhões.
Dentre esses bilhões o
Luis Claudio Moutinho Rocha
este Kavita Kavita
a exemplo da Via-Láctea
é um
(mesmo crendo que a unidade é ilusória).

Mas sabe que também haveria de não ter sido nenhum
se o mínimo de um fato na vida de sua tataravó
poderia ter feito seu pai não conhecer sua mãe
se o átimo de um gesto feito
por um dinossauro a milhões de anos atrás
poderia fazer sua mãe ter morrido antes dele nascer.

Porém
contra as incontáveis adversidades e aleatoriedades
eis aqui este cara:
um átomo de um grão dentro do universo
feliz por ter nascido no Rio de Janeiro
mesma cidade em que ela mora:
no fim de tudo
tudo era só por ela.

Poema de Amor


Certas músicas
como essa agora aqui no MP3
me trazem uma insondável nostalgia
das luzes e habitantes na noite da Lapa.

Lembram de ir me
desfazendo
rolando meus átomos pra
dentro das frestas do casario
preenchendo os vãos entre as
pedras portuguesas
e ligando as ranhuras dos Arcos.

Fiquei impregnado na carne
da Joaquim Silva
da Rua da Lapa
da Mem de Sá...

Onipresente nas coisas
depois que eu morrer serão minhas
saudades e minhas vontades
-essas substâncias que residem fora do tempo-
que fluirão ainda entre os
cheiros de bebida mijo e maconha
da minha insone e amada babilônia.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Da Adversidade Viemos


Você às vezes me pede pra
escrever poeminhas bonitos...
Mas veja bem menina
como posso versejar coisas bonitas
se entre um CD do Caetano e outro eu
tenho o som das rajadas no Morro do Urubu?
Não dá pra ser esse poeta blasé moderninho
escrever essa poesia Bossa-Nova
se não há posto seis na janela
se do outro lado da rua cruza a toda
o parador do ramal Japeri.

Mas você bem sabe que
eu não quero mesmo o poema que vem
do azul de Ipanema e suas mulheres
esculturadas e queimadas de sol
(às vezes até quero).
Mas não
não quero Vinícius num bar de Copacabana...
quero ser Bukowski na Lapa cheio de
cachaça barata na cara.
Quero ler o futuro nas manchas e
rachaduras do viaduto do Jacaré
e conseguir arrancar poesia também do
riso falso das putas barrigudas de Madureira.

Não sei ver beleza em gestos banais
nunca aprendi a poetizar cotidianos.
O que sei e quero é ferir o bom senso
anestesiar o vazio de viver os dias.

Mas eu soube menina
que as flores de lótus brotam na lama
e talvez eu seja um bom poeta.
Mesmo aqui
contra todas as adversidades
geladeira vazia e paisagem suburbana
não tendo nada a ver com essa juventude que
faz suas lindas poesias nos seus quartos
de apartamento em Botafogo.

Fantasma Industrial


A noite se esforça para derrubar o temporal.
Lentamente o ônibus passa em
frente a uma fábrica fechada onde as
janelas acesas me angustiam.
Através delas eu vejo prateleiras
abarrotadas de caixas
através delas eu vejo o teto de cinza cru
dentro da moribunda luz branca.

Mas na janela do meio há um
resíduo de vida:
existe ali um mulher fumando.

Dentre tanta concretude
eu chego a duvidar da sua realidade:
talvez ela seja só o fantasma de uma lembrança
um espectro assombrando o velho prédio.
Mas definitivamente ela está lá àquela hora
na janela de uma fábrica vazia
sentindo entranhar nas narinas e nas
roupas o cheiro da nicotina.

Ela nunca suporá que olhá-la ali
-nós que nunca nos conheceremos-
na janela acesa de uma fábrica deserta
fumando numa noite de quase temporal
me deixou querendo que a chuva caia.
Deixou pra mim
sem motivo algum
uma volta pra casa bem mais triste.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Tempo de Mudança


Ela gira nos cômodos vazios
e imagina o lugar de cada móvel
sem supor que ela ali
parada na sala no quarto vazio já é
tudo o que o apartamento precisa.

Depois
ela ri e chora porque nunca
soube impedir de transbordar a alegria
que carrega no peito.
E emburra e faz pirraça feito
criança por saber que a grana talvez
seja curta demais.

É a hora que chega
a primavera que ela quis
momento de jardins cultivados a dois.

Ela sabe e sonha
-e me embala nesse sonho-
e assim me faz saber também
que pra esse amor tão grande
qualquer simples apartamento pequeno
no Méier na Lapa
pode ser o epicentro da reunião
entre o céu e a terra.

Tlatoc


No sol eu quase posso esquecer.
Mas sob a chuva
cada gota te grita na memória e
essa boca que grita se escancara também
para devorar as horas da madrugada.

Eu invoco o relâmpago e
me disperso em átomos
viajando no tempo do clarão
até o lugar onde essa hora
a chuva não te molha
onde você tece instantes em
que nem lembra mais que eu
já fui um deus da chuva.

Daqui a pouco vai ser manhã límpida
e eu poderei ser feliz novamente
(mesmo sem você).
Porque é no azul sereno de uma
manhã despida da noite do temporal
que eu e o mundo nos sabemos sem morte.

Kwan Yin


O primeiro sol reluz no mato criando
esse vasto campo de luz
criando flechas acesas apontadas para o céu.
O sol dessa manhã
o sol que cobre esse matagal em Campo Grande
é o mesmo sol de mil anos atrás
é o mesmo sol que esquentava os campos de arroz
dos antepassados da chinesinha da pastelaria.

E saio um pouco da fila do ônibus
dou um passo pra trás para admirá-la e ver
que ela é tão linda quanto imagino ser uma
manhã branca em Pequim.

A Existência do Relâmpago


I
O que vê um relâmpago antes
de fender o céu?
Coisas e pessoas diminutas:
alvos em potencial.
Mas seu existir é uma fração
um átimo...

Sem tempo de mirar ele se
precipita quase sempre em vão
quase nunca cai no mesmo lugar
(mas sim senhores
ele cai).

II
Eu li no Livro dos Recordes que um
homem sobreviveu ao longo da vida
a queda de cinco raios sobre ele.
Ele cometeu suicídio por
um amor não correspondido.

Fico pensando que eu não
sobreviveria a um raio sequer...
mas já sobrevivi a uns cinco suicídios por amor.
Mereço o Livro dos Recordes?

III
Estou precisando sorrir.
Por isso
aqui na casa sem luz
eu fico de olhos fechados sobre o colchão
só para que cada vez que vare um relâmpago
eu tenha um segundo de alegria por
achar que a luz voltou.

IV
Nessa noite de Domingo
os raios e o som da chuva me
trazem em um estalo
nostalgias de noites que não vivi...
(como estará a Camerino
a Gomes Freire e a Lavradio a
essa hora?)

V
Logo depois do clarão do relâmpago
o telefone toca.

Conversamos.

Ao desligarmos o telefone a
luz volta no mesmo instante.
O telefonema dela veio com a luz e
me trouxe a luz de volta:
a voz da Fernanda me salvando
de um intervalo escuro.