quarta-feira, 19 de maio de 2010

Noturno do Centro


Nem tenho mais andando por aqui.
Já quase nem lembrava do
trânsito absurdo do Centro
a noite caindo na avenida inteira de
carros acesos
trazendo a sensação de velhas rotinas.

Por outro lado
também já me perdia dessa nostalgia
que tenho nem sei de quê
essa vontade de passado que
me agonia e me acalenta junto.

Envolto na densidade da atmosfera
das ruas do Castelo
ver passar a beleza padronizada
das secretárias
das advogadas
das recepcionistas e
seus celulares e seus sorrisos e
seus rostos maquiados
é uma alegria que só se interrompe na surpresa
de perceber que quase esqueci que
num momento de sorte
é possível encontrar uma moça bonita
também no Hotel Paris
(essa sem tailleur
só de shortinho).

Sentado em um bar da Ouvidor
uma ex-amante esperando alguém
como me esperava antigamente:
cigarro na mão
copo de cerveja pela metade na mesa...
Passo de esguelha:
não convém mais ao homem comprometido
a poesia do reencontro.

Na condução de volta
se senta ao meu lado um travesti.
Penso que seria uma mulher bonita se
não tivesse pêlos nos braços e
provavelmente
um pau maior que o meu.
Ele(a) tira um espelho da bolsa e começa
a pintar os lábios com batom.
Batom caquí igual ao daquela música
do Nando Reis que até hoje ainda insiste
em querer me fazer chorar.

Fingindo que não percebo ele(a)
me olhando através do vidro
eu vou vigiando os casais se abraçando
nos ônibus emparelhados
se amando nos pontos sob
a luz artificial dos postes:
luz cinza que dá-lhes o aspecto de estátuas de chumbo.
Estátuas eles são:
efígies minhas e dos beijos que deixei pra trás
daquelas horas passadas que ainda resistem
e se atualizam em todo momento presente.

E isso tudo me deflagra
em pleno banco de ônibus
às 9 horas de uma noite do Centro
(esta noite que ninguém percebe)
a ardência no rosto que anuncia a
contração nas bochechas donde nasce
o meio-sorriso triste de alguma saudade abortada.

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