segunda-feira, 16 de junho de 2014

quando ela foi embora, catou laboriosamente todas as roupas, os badulaques inacessíveis, os fios de cabelo espalhados pelo chão. quando ela foi embora levou quase tudo, menos as peças íntimas, as camisolas: essas ela deixou submersas na gaveta, a última de cima pra baixo, pois havia decidido, já sem nenhuma mágoa, que de agora em diante dormiria o resto da vida silenciosamente nua. isso era símbolo e prenúncio de uma mudança de existir, uma troca de pele, um desancorar-se.  ainda não chovia aquela manhã, ainda não. iria chover mais tarde, pois ela acordou agarrada na certeza de que não havia felicidade ali, e isso desenhou a promessa de algumas nuvens no céu daquele quarto. e ele, triste e estranho como era toda vida, ficou ali, imóvel: uma relíquia de alguma civilização antiga recoberta de pó. tropeçando nos livros, desrespeitado pelas gavetas, o cômodo azul escuro:  um cheiro infinito, a possibilidade da mudez, e da criação delicada de várias espécies novas de solidão.

Nenhum comentário: